São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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WALTER SALLES
Sexo, Athayde de Amar e videotape

Começo pedindo desculpas pela falha imperdoável. Já estou escrevendo estas mal-traçadas há algum tempo e ainda não lhe apresentei Athayde de Amar.
Revelo logo de saída: pelo menos em termos quantitativos, Athayde é um dos mais consistentes diretores de cinema do Brasil. Sua obra já conta com 77 longas, e o número cresce a razão de 2 filmes por mês. Isso mesmo: por mês.
Aqueles que jamais ouviram falar de Athayde de Amar não devem se espantar. Nem nós, que convivemos com ele durante anos, sabíamos do seu feito. Não que Athayde fosse uma figura desconhecida no meio da produção cinematográfica do Rio de Janeiro. Pelo contrário. Grande contador de histórias, dono de uma simpatia sem limites e de um sorriso angelical, Athayde era disputado por todas as produções da cidade.
Andar na sua Kombi -sim, porque Athayde foi kombista- era a garantia de um bom papo, de piadas apimentadas e de uma visão hilariante e corrosiva da política brasileira. Se "habia Gobierno", qualquer que ele fosse, Athayde era contra.
O interesse de Athayde pela arte cinematográfica ia bem além das suas obrigações imediatas. Nas filmagens, postava-se invariavelmente perto da câmera e disparava perguntas. O porquê de uma câmera na mão em vez do travelling, a decupagem de uma cena, nada escapava da sua ânsia indagativa.
Sua popularidade acabava assegurando a sua sobrevivência no set. E, assim, Athayde de Amar foi se tornando parte de nossas filmagens. Meu irmão João, mais paciente do que eu, adorava confabular com ele. Athayde havia se tornado figura indispensável na nossa produtora. Até o dia em que ele sumiu.
Durante um bom tempo, não houve quem o encontrasse. Os outros kombistas tentaram, em vão. Pensamos no pior: Athayde talvez tivesse sofrido algum acidente, ou simplesmente abandonado a produção cinematográfica sem aviso prévio.
Qual não foi a nossa surpresa quando um amigo nos trouxe uma revista com uma matéria de quatro páginas sobre o novo mestre do vídeo erótico brasileiro: Athayde de Amar. Não havia dúvida: lá estavam o seu rosto negro e alongado, o seu sorriso luminoso, estampados em página inteira.
A entrevista que acompanhava a foto dava conta de sua intensa produção. Revelava também os seus maiores sucessos: "Ilha da Perdição", "Fuga para o Prazer", "Preferência Nacional", além da sua obra-prima, "As Raspadinhas".
As surpresas iam de vento em popa. As respostas de Athayde, bem articuladas, demarcavam claramente um território de atuação. A do filme erótico, digamos, experimental. Alguns exemplos: Athayde filmou a primeira cena de penetração submarina feita no Brasil e realizou cenas pioneiras com travestis, em que estes não atuavam como elementos passivos. Propunha uma subversão da ordem no vídeo pornô feito nos trópicos, de tendência, segundo ele, arraigadamente machista e conservadora.
Folheando a revista, aprendo que Athayde já abocanhou todos os prêmios da sua especialidade. Mas o sucesso não o transformou e, para se lembrar dos amigos de então, Athayde ainda nos visita de vez em quando.
Numa dessas vezes, acabou dando uma carona no seu novo Jipe 4 x 4 para o produtor suíço Arthur Cohn. De brincadeira, aviso a Cohn que ele não é o produtor mais prolífico presente no carro, "Como não?", pergunta ele, do alto de seus cinco filmes com Vittorio de Sica, documentários oscarizados e longas de ficção. Explico a situação. Depois de alguns instantes de reflexão, Cohn volta a carga: "Senhor Athayde, quantas cenas de sexo tem os seus filmes?" "Oito ou nove, em média", responde Athayde. "É demais", retruca Cohn com ar professoral. "Não se deve nunca empanturrar o espectador."
Athayde voltou a nos visitar essa semana. Pretende expandir as suas atividades. Criou um novo programa de televisão, "Sexfaction". É um programa jornalístico, garante. O piloto traz a seguinte situação: uma moça revela a sua paixão pela irmã mais nova e diz que foi correspondida. Um debate entre uma sexóloga, um padre evangélico e um jurista dissecam o incesto. "É caso verídico, ibope na certa", assegura.
Tem mais : Athayde pode vir a dirigir um seriado de ficção para a TV, "Vivendo a Vida". E acabou há pouco uma adaptação do "Amante de Lady Chatterley", agora "Amante do Sexo", no qual o jardineiro do livro se transforma num mecânico que resolve os problemas mais exóticos de suas clientes.
Questiono as razões do sucesso de sua intensa produção. "É simples", revela Athayde. "Eu não faço vídeo pornô. Faço vídeo erótico, acredito em dramaturgia. Isso eu saquei logo : sem dramaturgia, nem sermão de padre evangélico dá certo."


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