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São Paulo, quarta-feira, 12 de fevereiro de 2003

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MARCELO COELHO

Dois poemas sobre a dificuldade de ser feliz

"Não se entra no país das maravilhas", diz o poeta Antonio Cicero, "pois ele fica do lado de fora,/ não do lado de dentro". Cito os primeiros versos de um poema publicado em "A Cidade e os Livros", que a editora Record lançou há pouco tempo.
É melhor transcrever o poema por inteiro. Fico um pouco sem graça ao fazer isso, porque os hábitos de leitura contemporâneos desaconselham os parágrafos muito longos, ainda mais no começo de um artigo. Mas vamos em frente.
"Não se entra no país das maravilhas,/ pois ele fica do lado de fora,/ não do lado de dentro. Se há saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu pensamento,/ jamais no centro vago do meu eu."
"E se me entrego às imagens do espelho/ ou da água, tendo no fundo o céu,/ Não pensem que me apaixonei por mim./ Não: bom é ver-se no espaço diáfano/ do mundo, coisa entre coisas que há/ no lume do espelho, fora de si:/ peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,/ um dia passo inteiro para lá."
Há poemas muito bonitos no livro de Antonio Cicero, e não digo isso como um elogio meio a esmo. Pode-se admirar a grandeza, a inteligência, a graça, e até a... "poesia" de um poema, sem que necessariamente nos chame a atenção o que há de bonito nele.
Mas "A Cidade e os Livros" suscita com frequência essa reação, a de dizer: "Que bonito!" ao fim da leitura. Talvez porque os poemas de Antonio Cicero tenham uma espécie de acabamento clássico, uma fluência, uma textura "lisa", que torna muito acessível o pensamento, a "idéia" que o autor quer expressar.
De fato, os poemas de Antonio Cicero não são do tipo que procura apenas fixar imagens, instantâneos da sensibilidade, numa sintaxe enxuta. Têm um caráter mais expositivo, mais filosófico, mais argumentativo. Chego a ponto de dizer que são poemas (o que é meio raro hoje em dia, acho) com os quais se pode discutir, com os quais se pode concordar ou não.
"O país das maravilhas fica do lado de fora, não do lado de dentro": ainda que se possa interpretar de muitas maneiras esses versos, tendo a acreditar no que eles dizem. Vale aproximá-los de um raciocínio do filósofo Theodor Adorno, no seu livro "Minima Moralia".
Adorno observa que não é possível estabelecer, com a felicidade, uma relação de posse. Não é certo dizer "temos felicidade", "somos donos de uma coisa chamada felicidade". Não a temos, diz Adorno, "mas sim estamos dentro dela."
Ele continua: "A felicidade é sentir-se envolvido, é uma reminiscência do ventre materno. Por isso, quem é feliz nunca pode saber que o é. Para dar-se conta da felicidade seria necessário sair de dentro dela. Quem afirma ser feliz está mentindo, e, ao invocar a felicidade, peca contra ela. Só quem afirma: "fui feliz" é fiel à felicidade. A única relação da consciência com a felicidade é a da gratidão: nisto consiste sua incomparável dignidade".
O raciocínio, como costuma acontecer nos textos de Adorno, é meio vertiginoso e me deixa com uma dúvida. Será possível dizer de uma pessoa que afirma "sou feliz" que ela está enganada? Que ela pensa ser feliz, mas não é? Como tendo a ser meio dono da verdade, minha primeira impressão é a de que sim. Fulano acha que é feliz, mas (pobre dele!) está errado.
Mas tento transferir esse raciocínio para a primeira pessoa. Posso perfeitamente declarar que, no presente momento, sou feliz. Estarei mentindo para mim mesmo? Talvez. O mais exato seria dizer: estou passando por cima de algumas coisas; faço uma generalização e, de certa maneira, estou conciliando uma avaliação genérica sobre o meu estado de espírito com a consciência de uma série de descontentamentos e imperfeições com que convivo.
Se, para Adorno, a única relação da consciência com a felicidade é a gratidão, não haveria nessa frase uma ingratidão para com o momento presente? Na tragédia de Goethe, Fausto experimenta um instante de plenitude e pede que aquele instante, tão belo, perdure eternamente: "Verweile doch, du bist so schön". Nesse momento, é claro, ele mergulha no abismo.
Entrar no "país das maravilhas" de que fala Antonio Cicero seria, talvez, essa entrega absoluta ao momento presente. Esse lugar em que sou "peixe entre peixes, pássaro entre pássaros", que está "do lado de fora", e não "do lado de dentro", seria justamente um estado de inconsciência, sem memória, de completa comunhão com o instante.
É por isso, talvez, que o passado nos parece sempre mais feliz. Recordamos o passado como se o tivéssemos vivido em estado de plena e total imersão em cada minuto. Pensamos que naquela época só existia o presente para nós. Evocamos um dia feliz do passado, mas não nos lembramos daquilo de que nos lembrávamos naquele dia. Ou seja, esquecemo-nos da memória que tínhamos, e que nos pesava certamente.
Termino com outro poema, da portuguesa Adília Lopes (sua "Antologia" acaba de ser publicada pela 7 Letras/Cosac e Naify). O poema chama-se "O Luna Parque" -o que, no português do Brasil, pode ser traduzido (!) por "Play Center".
"Eu julgava que aquilo era/ um Luna Parque/ saía-se como se entrava/ e não acontecia nada irreversível durante/ é o que é um Luna Parque/ quando se é adolescente/ mas não/ quando dei por mim/ já lá estava dentro/ e não me lembrava/ de ter entrado/ quando disse agora quero-me/ ir embora/ riram-se ah minha rica/ deste Luna Parque não se sai/ quem cá vem não volta/ não se volta atrás/ então comecei a pensar/ que ia passar o resto dos meus dias/ no Luna Parque/ acabas por aprender vais ver/ a fazer das tripas coração/ habituas-te vais ver/ nos primeiros tempos dói/ dá vontade de vomitar/ depois percebe-se que/ no Luna Parque que é/ um sítio triste/ pode não se ser triste/ sai muito caro/ mas poder pode-se".
Não sei como concluir este artigo. Melhor dizer: vou saindo dele. Até o próximo.


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