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MARCELO COELHO
Dois poemas sobre a dificuldade de ser feliz
"Não se entra no país das
maravilhas", diz o poeta
Antonio Cicero, "pois ele fica do
lado de fora,/ não do lado de dentro". Cito os primeiros versos de
um poema publicado em "A Cidade e os Livros", que a editora
Record lançou há pouco tempo.
É melhor transcrever o poema
por inteiro. Fico um pouco sem
graça ao fazer isso, porque os hábitos de leitura contemporâneos
desaconselham os parágrafos
muito longos, ainda mais no começo de um artigo. Mas vamos
em frente.
"Não se entra no país das maravilhas,/ pois ele fica do lado de fora,/ não do lado de dentro. Se há
saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu
pensamento,/ jamais no centro
vago do meu eu."
"E se me entrego às imagens do
espelho/ ou da água, tendo no
fundo o céu,/ Não pensem que me
apaixonei por mim./ Não: bom é
ver-se no espaço diáfano/ do
mundo, coisa entre coisas que há/
no lume do espelho, fora de si:/
peixe entre peixes, pássaro entre
pássaros,/ um dia passo inteiro
para lá."
Há poemas muito bonitos no livro de Antonio Cicero, e não digo
isso como um elogio meio a esmo.
Pode-se admirar a grandeza, a
inteligência, a graça, e até a...
"poesia" de um poema, sem que
necessariamente nos chame a
atenção o que há de bonito nele.
Mas "A Cidade e os Livros" suscita com frequência essa reação, a
de dizer: "Que bonito!" ao fim da
leitura. Talvez porque os poemas
de Antonio Cicero tenham uma
espécie de acabamento clássico,
uma fluência, uma textura "lisa",
que torna muito acessível o pensamento, a "idéia" que o autor
quer expressar.
De fato, os poemas de Antonio
Cicero não são do tipo que procura apenas fixar imagens, instantâneos da sensibilidade, numa
sintaxe enxuta. Têm um caráter
mais expositivo, mais filosófico,
mais argumentativo. Chego a
ponto de dizer que são poemas (o
que é meio raro hoje em dia,
acho) com os quais se pode discutir, com os quais se pode concordar ou não.
"O país das maravilhas fica do
lado de fora, não do lado de dentro": ainda que se possa interpretar de muitas maneiras esses versos, tendo a acreditar no que eles
dizem. Vale aproximá-los de um
raciocínio do filósofo Theodor
Adorno, no seu livro "Minima
Moralia".
Adorno observa que não é possível estabelecer, com a felicidade,
uma relação de posse. Não é certo
dizer "temos felicidade", "somos
donos de uma coisa chamada felicidade". Não a temos, diz Adorno, "mas sim estamos dentro dela."
Ele continua: "A felicidade é
sentir-se envolvido, é uma reminiscência do ventre materno. Por
isso, quem é feliz nunca pode saber que o é. Para dar-se conta da
felicidade seria necessário sair de
dentro dela. Quem afirma ser feliz
está mentindo, e, ao invocar a felicidade, peca contra ela. Só quem
afirma: "fui feliz" é fiel à felicidade.
A única relação da consciência
com a felicidade é a da gratidão:
nisto consiste sua incomparável
dignidade".
O raciocínio, como costuma
acontecer nos textos de Adorno, é
meio vertiginoso e me deixa com
uma dúvida. Será possível dizer
de uma pessoa que afirma "sou
feliz" que ela está enganada? Que
ela pensa ser feliz, mas não é? Como tendo a ser meio dono da verdade, minha primeira impressão
é a de que sim. Fulano acha que é
feliz, mas (pobre dele!) está errado.
Mas tento transferir esse raciocínio para a primeira pessoa. Posso perfeitamente declarar que, no
presente momento, sou feliz. Estarei mentindo para mim mesmo?
Talvez. O mais exato seria dizer:
estou passando por cima de algumas coisas; faço uma generalização e, de certa maneira, estou
conciliando uma avaliação genérica sobre o meu estado de espírito com a consciência de uma série
de descontentamentos e imperfeições com que convivo.
Se, para Adorno, a única relação da consciência com a felicidade é a gratidão, não haveria nessa
frase uma ingratidão para com o
momento presente? Na tragédia
de Goethe, Fausto experimenta
um instante de plenitude e pede
que aquele instante, tão belo, perdure eternamente: "Verweile
doch, du bist so schön". Nesse momento, é claro, ele mergulha no
abismo.
Entrar no "país das maravilhas" de que fala Antonio Cicero
seria, talvez, essa entrega absoluta ao momento presente. Esse lugar em que sou "peixe entre peixes, pássaro entre pássaros", que
está "do lado de fora", e não "do
lado de dentro", seria justamente
um estado de inconsciência, sem
memória, de completa comunhão
com o instante.
É por isso, talvez, que o passado
nos parece sempre mais feliz. Recordamos o passado como se o tivéssemos vivido em estado de plena e total imersão em cada minuto. Pensamos que naquela época
só existia o presente para nós.
Evocamos um dia feliz do passado, mas não nos lembramos daquilo de que nos lembrávamos
naquele dia. Ou seja, esquecemo-nos da memória que tínhamos, e
que nos pesava certamente.
Termino com outro poema, da
portuguesa Adília Lopes (sua
"Antologia" acaba de ser publicada pela 7 Letras/Cosac e Naify). O
poema chama-se "O Luna Parque" -o que, no português do
Brasil, pode ser traduzido (!) por
"Play Center".
"Eu julgava que aquilo era/ um
Luna Parque/ saía-se como se entrava/ e não acontecia nada irreversível durante/ é o que é um Luna Parque/ quando se é adolescente/ mas não/ quando dei por
mim/ já lá estava dentro/ e não
me lembrava/ de ter entrado/
quando disse agora quero-me/ ir
embora/ riram-se ah minha rica/
deste Luna Parque não se sai/
quem cá vem não volta/ não se
volta atrás/ então comecei a pensar/ que ia passar o resto dos meus
dias/ no Luna Parque/ acabas por
aprender vais ver/ a fazer das tripas coração/ habituas-te vais ver/
nos primeiros tempos dói/ dá vontade de vomitar/ depois percebe-se que/ no Luna Parque que é/ um
sítio triste/ pode não se ser triste/
sai muito caro/ mas poder pode-se".
Não sei como concluir este artigo. Melhor dizer: vou saindo dele.
Até o próximo.
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