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RODAPÉ
Múltiplos de três
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Na conta justa dos "Três Contos" (1877), Flaubert fez caber o
melhor da prosa ficcional de um
século. A vida espoliada da criada
Felicité, o caminho sanguinolento
de Julião para a santidade e as intrigas palacianas que precedem a
execução de João Batista não apenas firmaram-se, enclave de perfeição, ao lado de obras-primas
tais quais "Madame Bovary" e "A
Educação Sentimental", como
deixaram longa e respeitável descendência literária, que a recente
e primorosa edição brasileira reclama de volta às estantes.
Duas crias póstumas, tão representativas do século 20 como os
contos flaubertianos o foram do
anterior, são as "Três Vidas", livro
de estréia da americana em Paris,
Gertrude "a Rosa" Stein (de 1909,
tradução brasileira esgotada de
Brenno Silveira e José Paulo Paes,
Nova Fronteira, 1983), e as "Três
Mulheres", do austríaco Robert
Musil (de 1924, tradução brasileira esgotada de Lya Luft, Nova
Fronteira, 1983).
As traduções brasileiras estão
há muito esgotadas, à espera da
iniciativa e da boa vontade dos
editores.
À primeira vista, a matéria triste
anunciada pela epígrafe tomada
ao poeta Jules Laforgue -"donc
je suis malhereux et ce n'est ni ma
faute ni celle de la vie" (e assim
sou infeliz e não é culpa minha
nem da vida)- é a ponte mais
forte entre o livro de Stein e o de
Flaubert.
Duas das três protagonistas de
suas "Vidas" são, como Felicité,
empregadas, teuto-americanas,
escravas da mesma rotina descolorida. A terceira é uma negra da
região de Baltimore. Mas, para
além do tratamento literário sério
e convincente de existências miúdas, o que reúne as duas coletâneas na mesma matriz é a pesquisa da linguagem, profundamente
marcada pelo seu tempo.
Um novo tipo de realismo, modernista e de difícil assimilação,
foi o que leitores como Edmund
Wilson identificaram na escrita
da primeira Stein.
A emulação da liberdade experimentadora da vanguarda da
pintura européia, que patrocinou
e recebeu, anos a fio, em sua casa,
espécie de salão extemporâneo,
somou-se nela ao interesse mais
que diletante pela psicologia dos
comportamentos e os mecanismos de funcionamento da consciência. Não por acaso, Henry James era um de seus autores de cabeceira.
Da convivência íntima com a filosofia pragmatista do irmão de
Henry, William James (de quem
foi aluna destacada, em Harvard),
ficou o respeito pelas coisas do
mundo no frescor de sua imediaticidade, ainda indomadas pela
geometria de uma lógica discursiva pré-moldada ou pelo peso dos
lugares-comuns sedimentados.
Como em Flaubert, a busca era
pela forma justa.
Sua arma foi a repetição (que
preferia chamar de insistência),
corroendo a sintaxe ordinária e
detendo a atenção do leitor incauto em cada elemento da frase, reiterada sempre com mínimas modulações, alterações de ênfase.
Nas "Três Vidas", a novidade do
estilo serviu para dar substância
ao mundo interior de agitação
inútil da boa Ana (a quem não falta nem mesmo o papagaio) e da
doce Lena, mas também às idas e
vindas da oscilante e complexa da
vida amorosa de Melanctha, uma
jovem negra.
Os ritmos insólitos de sua prosa
traduzem não apenas a oralidade,
cara aos modernistas, mas o acanhamento e desconcerto dos heróis modernos, que reaparecem
na trinca de contos de Robert Musil.
Em "Três Mulheres", Flaubert
está em toda parte: nas histórias
de "Grigia", uma camponesa que
se envolve com um engenheiro de
minas, e "Tonka", balconista
amante de um aristocrata, mas especialmente em "A Portuguesa",
narrativa das provações de um
guerreiro, latejando alegorias, à
maneira do mundo medieval d"
"A legenda de São Julião, o Hospitaleiro".
A marca moderna e a novidade
que Musil (1880-1942) traz é a de
um leitor de Freud. Em "Tonka",
a recriação dos sonhos que acompanham o estertor da relação entre a moça humilde e o estudante,
sob a sombra da traição, valem o
livro e rendem justa homenagem
ao autor dos "Três Contos", atualizando a fórmula novecentista e
concentrando a essência do criador de "O Homem Sem Qualidades" no pequeno frasco das narrativas breves em três movimentos.
Fabio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Três Contos
Autor: Gustave Flaubert
Tradução: Milton Hatoun e Samuel
Titan Jr.
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (144 págs.)
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