São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2005

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RODAPÉ

Múltiplos de três

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Na conta justa dos "Três Contos" (1877), Flaubert fez caber o melhor da prosa ficcional de um século. A vida espoliada da criada Felicité, o caminho sanguinolento de Julião para a santidade e as intrigas palacianas que precedem a execução de João Batista não apenas firmaram-se, enclave de perfeição, ao lado de obras-primas tais quais "Madame Bovary" e "A Educação Sentimental", como deixaram longa e respeitável descendência literária, que a recente e primorosa edição brasileira reclama de volta às estantes.
Duas crias póstumas, tão representativas do século 20 como os contos flaubertianos o foram do anterior, são as "Três Vidas", livro de estréia da americana em Paris, Gertrude "a Rosa" Stein (de 1909, tradução brasileira esgotada de Brenno Silveira e José Paulo Paes, Nova Fronteira, 1983), e as "Três Mulheres", do austríaco Robert Musil (de 1924, tradução brasileira esgotada de Lya Luft, Nova Fronteira, 1983).
As traduções brasileiras estão há muito esgotadas, à espera da iniciativa e da boa vontade dos editores.
À primeira vista, a matéria triste anunciada pela epígrafe tomada ao poeta Jules Laforgue -"donc je suis malhereux et ce n'est ni ma faute ni celle de la vie" (e assim sou infeliz e não é culpa minha nem da vida)- é a ponte mais forte entre o livro de Stein e o de Flaubert.
Duas das três protagonistas de suas "Vidas" são, como Felicité, empregadas, teuto-americanas, escravas da mesma rotina descolorida. A terceira é uma negra da região de Baltimore. Mas, para além do tratamento literário sério e convincente de existências miúdas, o que reúne as duas coletâneas na mesma matriz é a pesquisa da linguagem, profundamente marcada pelo seu tempo.
Um novo tipo de realismo, modernista e de difícil assimilação, foi o que leitores como Edmund Wilson identificaram na escrita da primeira Stein.
A emulação da liberdade experimentadora da vanguarda da pintura européia, que patrocinou e recebeu, anos a fio, em sua casa, espécie de salão extemporâneo, somou-se nela ao interesse mais que diletante pela psicologia dos comportamentos e os mecanismos de funcionamento da consciência. Não por acaso, Henry James era um de seus autores de cabeceira.
Da convivência íntima com a filosofia pragmatista do irmão de Henry, William James (de quem foi aluna destacada, em Harvard), ficou o respeito pelas coisas do mundo no frescor de sua imediaticidade, ainda indomadas pela geometria de uma lógica discursiva pré-moldada ou pelo peso dos lugares-comuns sedimentados. Como em Flaubert, a busca era pela forma justa.
Sua arma foi a repetição (que preferia chamar de insistência), corroendo a sintaxe ordinária e detendo a atenção do leitor incauto em cada elemento da frase, reiterada sempre com mínimas modulações, alterações de ênfase. Nas "Três Vidas", a novidade do estilo serviu para dar substância ao mundo interior de agitação inútil da boa Ana (a quem não falta nem mesmo o papagaio) e da doce Lena, mas também às idas e vindas da oscilante e complexa da vida amorosa de Melanctha, uma jovem negra.
Os ritmos insólitos de sua prosa traduzem não apenas a oralidade, cara aos modernistas, mas o acanhamento e desconcerto dos heróis modernos, que reaparecem na trinca de contos de Robert Musil.
Em "Três Mulheres", Flaubert está em toda parte: nas histórias de "Grigia", uma camponesa que se envolve com um engenheiro de minas, e "Tonka", balconista amante de um aristocrata, mas especialmente em "A Portuguesa", narrativa das provações de um guerreiro, latejando alegorias, à maneira do mundo medieval d" "A legenda de São Julião, o Hospitaleiro".
A marca moderna e a novidade que Musil (1880-1942) traz é a de um leitor de Freud. Em "Tonka", a recriação dos sonhos que acompanham o estertor da relação entre a moça humilde e o estudante, sob a sombra da traição, valem o livro e rendem justa homenagem ao autor dos "Três Contos", atualizando a fórmula novecentista e concentrando a essência do criador de "O Homem Sem Qualidades" no pequeno frasco das narrativas breves em três movimentos.


Fabio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Três Contos
    
Autor: Gustave Flaubert
Tradução: Milton Hatoun e Samuel Titan Jr.
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (144 págs.)


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