São Paulo, quinta, 12 de fevereiro de 1998

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Infância berra nos Jardins

Luciana Napchan
A garota E.C., 13, que mora em uma casa-abrigo do Estado e estará na mostra do MIS


ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

A menina avistou a câmera e soltou o berro mais forte que conseguiu. Para se inspirar, pensou em "uma coisa bem chata", que aconteceu "outro dia mesmo" e que a deixou "tonta de raiva".
J.R.S., de 10 anos, divide uma casa na zona sudoeste de São Paulo com a mãe, quatro irmãos e uns tantos agregados. É uma habitação precária: não dispõe de água nem luz, e as paredes estão rachando.
Quem mora nas redondezas costuma encontrar a garota pelas ruas, quase sempre em companhia da irmã caçula, de apenas 3 anos.
Há poucos meses, a fotógrafa paulistana Luciana Napchan fez um acordo com J.R.S. Pediu que gritasse e a retratou. Em troca, lhe deu de presente uma cópia da foto.
"Adoro batucar", contou a menina à Folha. "Só que o pessoal daqui implica com meu batuque. Uma vez, me mandaram sossegar. Sosseguei, mas não esqueci. Usei o grito para descontar a raiva."
A explicação é tão desconcertante quanto a mostra que Luciana, 30, inaugura no próximo sábado. A fotógrafa vai expor 11 rostos em painéis de lona, cada um com 2,6 metros de altura pelo mesmo tanto de comprimento.
Como outdoors, irão se enfileirar diante do MIS (Museu da Imagem e do Som), numa das áreas mais nobres de São Paulo, o Jardim Europa. O retrato de J.R.S. estará entre as 11 fotografias. As outras dez também exibirão crianças e adolescentes berrando.

Luciana Napchan
D.G.R.S, 3, que mora com a família em uma casa abandonada na zona sudoeste de São Paulo



Todos os personagens têm histórias parecidas. São o que o jargão politicamente correto convencionou chamar de "meninos, meninas e jovens em situação social de risco". Quer dizer: vivem ou já viveram nas ruas, ou então moram com famílias desestruturadas.
"Alguns enfrentam tanta rejeição que, quando esbarram em um espelho, são incapazes de se mirar por muito tempo. Às vezes, nem se reconhecem", relata a psicóloga Sara Lopes Martins Macedo, que trabalha em instituições públicas de assistência à infância.
Os painéis do MIS propõem, justamente, que a sociedade encare e reconstrua a imagem despedaçada dos garotos. Apelam à linguagem publicitária como "estratégia de guerrilha". Querem tomar a cidade de assalto para que nem mesmo olhos arredios consigam evitá-los.
Os 11 retratos nasceram numa oficina semanal de máscara e fotografia que Luciana e Carlos Alberto Torres Jr. coordenam desde março do ano passado em uma casa da Vila Clementino (zona sudoeste). É lá que funciona o Projeto Quixote, programa de apoio às crianças carentes patrocinado pela Universidade Federal de São Paulo e pelo Estado.
Os participantes das oficinas -não raro, meninos que estão só de passagem e comparecem uma única vez- posam para fotos com máscaras de papel machê que eles mesmos confeccionam.
Depois, se deixam retratar de cara limpa, mas gritando. O fundo é sempre igual, uma lona que o artista plástico Paulo von Poser salpicou de azul e branco.
Como Luciana usa polaroids, os retratos ficam prontos imediatamente. A meninada pode levá-los embora e, sobretudo, ver o próprio rosto dos dois jeitos: escondido sob a máscara e libertado pelo grito.
A brincadeira, acredita a fotógrafa, acaba por estimular o autoconhecimento de cada garoto.
No MIS, não haverá apenas uma amostra dos berros que Luciana captou. Seis retratos de crianças mascaradas dividirão o espaço interno do museu com trabalhos de outros fotógrafos, que também abordam a infância.


Mostra: Gritos da Rua (exposição de Luciana Napchan, Egberto Nogueira e outros fotógrafos) Onde: Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158, Jardins, tel. 011/852-9197) Quando: de sábado, às 11h, até 1º de março


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