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Épocas de mudança polarizam expectativas
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
O pior cego é o que está certo
e convicto de que vê. Além de
não ver, ele vê o que não existe;
além de não saber, está crente
que sabe. Poucas coisas revelam de forma tão plena a nossa propensão a esse tipo de cegueira povoada de falsas certezas quanto as profecias e previsões acaloradas feitas em
tempos de rápida mudança.
Que isso aconteça, é natural.
Mas a julgar pelos inúmeros
fiascos e desacertos do passado, o melhor a fazer é não exagerar no crédito -é manter a
janela da dúvida sempre entreaberta.
Considere, de início, os prognósticos e visões de futuro de
alguns dos principais expoentes do pensamento europeu
acerca do mundo que emergia
da chamada "dupla revolução" -a Revolução Francesa
de 1789 e a Primeira Revolução Industrial de 1780 a 1840.
De repente, sob os olhos de
uma humanidade atônita, a
marcha dos acontecimentos se
acelera, o tempo parece desembestar e o leque de possibilidades de futuro se expande dramaticamente.
O termômetro da ansiedade
dispara. No quê vai dar tudo
isso? Para onde vamos? No
mercado de prognósticos e vaticínios, uma enorme bolha especulativa toma conta da imaginação dos homens.
Para os economistas clássicos
do início do século 19, por
exemplo, teóricos brilhantes
como Ricardo e Malthus, a
economia inglesa da época
passava por um surto efêmero
de crescimento ("estado progressivo"), mas estava fadada
a entrar num período de estagnação prolongada ("estado
estacionário"), devido à operação de leis econômicas implacáveis.
Como observaria Schumpeter em retrospecto, no conforto
de mais de um século de perspectiva, "os economistas clássicos ingleses viveram às portas dos mais espetaculares desenvolvimentos na área econômica jamais testemunhados, e
vastas potencialidades se materializavam sob suas vistas; a
despeito disso, entretanto, tudo o que viam eram economias
sufocadas, lutando com um sucesso cada vez menor para ganhar o sustento diário". Não
foi à toa que a economia clássica recebeu o apelido de
"ciência lúgubre".
Mas nem só de sombras, é
claro, viviam os adeptos da
"ciência lúgubre". Olhando
para o futuro na geração seguinte à de Ricardo e Malthus,
John Stuart Mill conseguiu vislumbrar um mundo no qual o
fim da acumulação de capital
era apenas o pano de fundo
para uma nova forma de sociabilidade entre os homens
-uma sociedade na qual "ao
passo que ninguém é pobre,
ninguém deseja se tornar mais
rico, nem tem qualquer receio
de ser empurrado para trás pelos esforços dos demais em se
lançarem à frente". Ano: 1848.
Do outro lado do espectro
ideológico estavam os críticos
radicais do mundo que se
constituía a partir da "dupla
revolução". Os fantasmas e visões de futuro que alimentavam eram evidentemente outros, mas a sua capacidade de
antever com um mínimo de
acerto o que vinha pela frente
não ficava em nada a dever
aos piores excessos de seus rivais na bolsa de futuros.
Se autores como Bentham e
Condorcet celebravam o advento da ciência moderna, da
grande indústria e do livre
mercado como o triunfo definitivo da razão e o passaporte
da felicidade universal, os críticos românticos da nova ordem encontravam nessas mesmas forças e realidades de sua
época a fonte do desespero e o
caminho da perdição.
Onde uns viam o progresso
ilimitado e o domínio crescente das forças naturais, outros
viam a ruína moral da humanidade e a devastação da natureza. O predomínio do mercado e da "filosofia dos porcos", vaticinava o romântico
Carlyle, conduzirá o mundo a
um tenebroso vácuo espiritual
onde "as relações de pagamento à vista serão os únicos
vínculos ligando um ser humano a outro".
Outro megaespeculador no
mercado de profecias detonado pelo big-bang da "dupla
revolução" foi Marx. É espantosa a frequência com que
Marx, ao longo de décadas de
torcida, apostou todas as fichas na certeza dialética de
que "a luta de classes beira a
sua hora decisiva".
Seria curioso fazer um levantamento das incontáveis vezes
em que ele, tanto nas obras publicadas quanto em cartas e
anotações, pressentiu a chegada do "dilúvio" e anunciou
"o fim iminente do capitalismo".
Como um virtuose na arte do
pensamento desejoso, Marx
soube como ninguém transformar tudo aquilo que ele próprio sonhava para o futuro da
humanidade em prognósticos
"científicos" movidos a leis
históricas inexoráveis. Era isso
ou barbárie.
O interesse dessa breve galeria de exemplos -muitos outros poderiam ser lembrados-
não é meramente historiográfico.
O que ocorreu no bojo da
"dupla revolução" revela de
forma contundente o que tende a acontecer com a formação
de crenças em épocas, como a
nossa, de acelerada mudança.
Ao examinar boa parte do que
vem sendo dito e escrito hoje
em dia sobre a chamada globalização, duas coisas me chamam a atenção.
A primeira é o tom categórico -profético ou pretensamente científico- dos prognósticos. Por mais incertas que
sejam (ou precisamente por
causa disso), as visões de futuro nos são vendidas como se
fossem certezas mais rijas que
as cerdas do javali.
Poucos autores se dão ao trabalho de explicitar as premissas e condições em que assentam as previsões que fazem.
Mais raro ainda é aquele que
se permite levantar qualquer
tipo de dúvida sobre os resultados altamente especulativos
de sua prospecção.
O tom dominante é o do profeta inspirado ou do cientista
neutro que decifrou o hieróglifo do futuro e agora oferece à
opinião pública ignara a dádiva de sua presciência.
A segunda coisa que salta
aos olhos é a forte tendência à
polarização de expectativas.
Assim como um macroambiente estável e sedimentado
favorece a convergência de visões sobre o amanhã, é natural
que um mundo em vertiginosa
mudança -tecnológica, econômica e geopolítica- provoque uma assombrosa dispersão
de crenças sobre o que o futuro
nos reserva.
O fato é que à medida que o
futuro se torna menos previsível e mais aberto, maior também parece ser a propensão a
preenchê-lo com as cores dos
nossos desejos e ânimos primários.
O triunfalismo incontido de
um Fukuyama ou de um Jeffrey Sachs, de um lado, e o catastrofismo amargurado de
um Baudrillard ou de um Robert Kurz, de outro, são produtos típicos de épocas marcadas
pela aceleração do tempo histórico, com toda a carga de ansiedade que isso gera.
A expansão do leque de possibilidades à nossa frente, com
o vasto potencial de promessas
e ameaças que se abrem, é o
aeroporto ideal para a decolagem das nossas maiores esperanças e piores temores.
As miragens e abismos que
nos povoam têm sua razão de
ser. Uma das poucas certezas
confiáveis que podemos ter sobre o futuro é que ele não repetirá o passado. Mas, a julgar
pela capacidade de predição
dos melhores cérebros do passado, é muito provável que os
historiadores de idéias do futuro terão enorme dificuldade
em compreender como chegamos a visualizar e a dar crédito ao que acreditamos.
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