São Paulo, quinta, 12 de fevereiro de 1998

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Épocas de mudança polarizam expectativas

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

O pior cego é o que está certo e convicto de que vê. Além de não ver, ele vê o que não existe; além de não saber, está crente que sabe. Poucas coisas revelam de forma tão plena a nossa propensão a esse tipo de cegueira povoada de falsas certezas quanto as profecias e previsões acaloradas feitas em tempos de rápida mudança.
Que isso aconteça, é natural. Mas a julgar pelos inúmeros fiascos e desacertos do passado, o melhor a fazer é não exagerar no crédito -é manter a janela da dúvida sempre entreaberta.
Considere, de início, os prognósticos e visões de futuro de alguns dos principais expoentes do pensamento europeu acerca do mundo que emergia da chamada "dupla revolução" -a Revolução Francesa de 1789 e a Primeira Revolução Industrial de 1780 a 1840.
De repente, sob os olhos de uma humanidade atônita, a marcha dos acontecimentos se acelera, o tempo parece desembestar e o leque de possibilidades de futuro se expande dramaticamente.
O termômetro da ansiedade dispara. No quê vai dar tudo isso? Para onde vamos? No mercado de prognósticos e vaticínios, uma enorme bolha especulativa toma conta da imaginação dos homens.
Para os economistas clássicos do início do século 19, por exemplo, teóricos brilhantes como Ricardo e Malthus, a economia inglesa da época passava por um surto efêmero de crescimento ("estado progressivo"), mas estava fadada a entrar num período de estagnação prolongada ("estado estacionário"), devido à operação de leis econômicas implacáveis.
Como observaria Schumpeter em retrospecto, no conforto de mais de um século de perspectiva, "os economistas clássicos ingleses viveram às portas dos mais espetaculares desenvolvimentos na área econômica jamais testemunhados, e vastas potencialidades se materializavam sob suas vistas; a despeito disso, entretanto, tudo o que viam eram economias sufocadas, lutando com um sucesso cada vez menor para ganhar o sustento diário". Não foi à toa que a economia clássica recebeu o apelido de "ciência lúgubre".
Mas nem só de sombras, é claro, viviam os adeptos da "ciência lúgubre". Olhando para o futuro na geração seguinte à de Ricardo e Malthus, John Stuart Mill conseguiu vislumbrar um mundo no qual o fim da acumulação de capital era apenas o pano de fundo para uma nova forma de sociabilidade entre os homens -uma sociedade na qual "ao passo que ninguém é pobre, ninguém deseja se tornar mais rico, nem tem qualquer receio de ser empurrado para trás pelos esforços dos demais em se lançarem à frente". Ano: 1848.
Do outro lado do espectro ideológico estavam os críticos radicais do mundo que se constituía a partir da "dupla revolução". Os fantasmas e visões de futuro que alimentavam eram evidentemente outros, mas a sua capacidade de antever com um mínimo de acerto o que vinha pela frente não ficava em nada a dever aos piores excessos de seus rivais na bolsa de futuros.
Se autores como Bentham e Condorcet celebravam o advento da ciência moderna, da grande indústria e do livre mercado como o triunfo definitivo da razão e o passaporte da felicidade universal, os críticos românticos da nova ordem encontravam nessas mesmas forças e realidades de sua época a fonte do desespero e o caminho da perdição.
Onde uns viam o progresso ilimitado e o domínio crescente das forças naturais, outros viam a ruína moral da humanidade e a devastação da natureza. O predomínio do mercado e da "filosofia dos porcos", vaticinava o romântico Carlyle, conduzirá o mundo a um tenebroso vácuo espiritual onde "as relações de pagamento à vista serão os únicos vínculos ligando um ser humano a outro".
Outro megaespeculador no mercado de profecias detonado pelo big-bang da "dupla revolução" foi Marx. É espantosa a frequência com que Marx, ao longo de décadas de torcida, apostou todas as fichas na certeza dialética de que "a luta de classes beira a sua hora decisiva".
Seria curioso fazer um levantamento das incontáveis vezes em que ele, tanto nas obras publicadas quanto em cartas e anotações, pressentiu a chegada do "dilúvio" e anunciou "o fim iminente do capitalismo".
Como um virtuose na arte do pensamento desejoso, Marx soube como ninguém transformar tudo aquilo que ele próprio sonhava para o futuro da humanidade em prognósticos "científicos" movidos a leis históricas inexoráveis. Era isso ou barbárie.
O interesse dessa breve galeria de exemplos -muitos outros poderiam ser lembrados- não é meramente historiográfico.
O que ocorreu no bojo da "dupla revolução" revela de forma contundente o que tende a acontecer com a formação de crenças em épocas, como a nossa, de acelerada mudança. Ao examinar boa parte do que vem sendo dito e escrito hoje em dia sobre a chamada globalização, duas coisas me chamam a atenção.
A primeira é o tom categórico -profético ou pretensamente científico- dos prognósticos. Por mais incertas que sejam (ou precisamente por causa disso), as visões de futuro nos são vendidas como se fossem certezas mais rijas que as cerdas do javali.
Poucos autores se dão ao trabalho de explicitar as premissas e condições em que assentam as previsões que fazem. Mais raro ainda é aquele que se permite levantar qualquer tipo de dúvida sobre os resultados altamente especulativos de sua prospecção.
O tom dominante é o do profeta inspirado ou do cientista neutro que decifrou o hieróglifo do futuro e agora oferece à opinião pública ignara a dádiva de sua presciência.
A segunda coisa que salta aos olhos é a forte tendência à polarização de expectativas.
Assim como um macroambiente estável e sedimentado favorece a convergência de visões sobre o amanhã, é natural que um mundo em vertiginosa mudança -tecnológica, econômica e geopolítica- provoque uma assombrosa dispersão de crenças sobre o que o futuro nos reserva.
O fato é que à medida que o futuro se torna menos previsível e mais aberto, maior também parece ser a propensão a preenchê-lo com as cores dos nossos desejos e ânimos primários.
O triunfalismo incontido de um Fukuyama ou de um Jeffrey Sachs, de um lado, e o catastrofismo amargurado de um Baudrillard ou de um Robert Kurz, de outro, são produtos típicos de épocas marcadas pela aceleração do tempo histórico, com toda a carga de ansiedade que isso gera.
A expansão do leque de possibilidades à nossa frente, com o vasto potencial de promessas e ameaças que se abrem, é o aeroporto ideal para a decolagem das nossas maiores esperanças e piores temores.
As miragens e abismos que nos povoam têm sua razão de ser. Uma das poucas certezas confiáveis que podemos ter sobre o futuro é que ele não repetirá o passado. Mas, a julgar pela capacidade de predição dos melhores cérebros do passado, é muito provável que os historiadores de idéias do futuro terão enorme dificuldade em compreender como chegamos a visualizar e a dar crédito ao que acreditamos.



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