São Paulo, Sexta-feira, 12 de Fevereiro de 1999
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GASTRONOMIA
Nos velhos carnavais, servia-se guaraná morno

NINA HORTA
Colunista da Folha

Fui procurar nos guardados alguma foto de carnavais passados. Achei um corso ou outro da época dos pais e uma tia muito jovem fantasiada de Eva com cabelos pretos naturais caindo até os joelhos, olhar deprimido e lânguido. Atrás, escrito com a letra do irmão, o mais implicante de um sexteto de irmãos implicantes: "Guardar com urgência. Pode alcançar 1 milhão de dólares num leilão de chocaria". "Chocaria" no jargão dos Guimarães significava sem-graceza, pouca pimenta.
Ouço discos de modinhas para ver o quanto se falava de comida, nas letras. "Mamãe eu quero, mamãe, eu quero mamar" era o hino carnavalesco, e sintetizava todas as fomes. De quando em quando surge um pedreiro Valdemar que levava a marmita envolta no jornal e se tinha almoço nem sempre o jantar era garantido. Muitas queixas sobre a vida cotidiana. "E o que me cansa é pensar que lá em casa não tem água nem pra cozinhar!" Os elogios às morenas faceiras, às mulatas dengosas, às loiras de cristal vinham muitas vezes expressos em metáforas comestíveis. "Menina, você é um doce-de-coco, tá me deixando louco, tá me deixando louco!" O Carnaval de salão era uma festa familiar, talvez por isso seu sucesso. Todos estavam incluídos na folia, velhos, moços, crianças, agregados.
Nas matinês infantis pais e mães carregavam ao pescoço as tirolesas, os índios, ciganas, bailarinas, havaianas formando futuros foliões. E aproveitavam para flertar um pouco. As crianças, olho vivo, não deixavam passar nada, Édipos acesos...
Bebia-se muito guaraná morno. Toneladas. Lembro assim de longe, nas brumas, do clube Harmonia, fresco, gostoso de brincar . Do Municipal dourado e de um baile infantil lá, animado por Luiz Gonzaga, que chegou estrebuchando baixinho, morto de raiva por ter sido chamado às pressas para quebrar um galho inesperado. E dançamos ao som de "Asa Branca" e da sanfona divididos por uma corda entre grandes e pequenos.
O que se comia nesses bailecos? Com uns trocados na mão ia-se até o bar pedir alguma coisa para beber. Comer, quase impossível. Muita gente, poucos garçons suados, Allah-la-ôôô, mas que calor, ô,ô,ô. Grande era a alegria quando chegava à mesa um prato de sanduíches frios e finos, de presunto e queijo. Não deixavam memória. Eram pretextos. Queríamos comer o mundo. A comida era o próprio Carnaval.
Naqueles dez dias (havia os pré-carnavalescos) não era hora de paladares aguçados ou satisfeitos e sim de cheiro de Rodo metálico, das texturas secas e empoeiradas do confete grudando na garganta, da serpentina enrolada no pescoço, olhos ardendo de lança-perfume.
Suávamos a infância e a adolescência naquela festa, dançávamos todas as fantasias e desejos que nasciam ainda informes. Comer, para quê? Seria perder minutos indispensáveis, críticos, renovadores, totalmente relevantes para a alegre educação de nosso corpo e nossa alma.
Com o correr dos anos os filhos cresciam e se juntavam aos pais no mesmo baile. Esplanada, Homs, Paulistano, Pinheiros. Ao guaraná morno acrescentava-se uísque, champanhe e cerveja. Gelo, gelo, meu reino por um balde de gelo.
Se as marchas e sambas omitiam a comida cantavam mesmo a bebida. "Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água, não. Cachaça vem do alambique, e água vem do ribeirão. Pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão. Pode me faltar manteiga e tudo mais faz falta não. Só não quero que me falte a gostosa da cachaça!"
Uma noite, no Esplanada, nós, duas meninas adolescentes, nos preocupamos com os pais cheios de juízo, que haviam ido sem as mulheres tomar conta das filhas. "Ai, ai, brotinho! Não cresças meu brotinho nem murches como a flor." Corremos o salão que estávamos e nada. No outro, achamos os dois, sobre a mesa, braços levantados, dedos indicadores para cima, mergulhados nas "as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar, eu passo a mão na saca saca-rolha e bebo até me afogar!".
Era assim. "Foi numa casca de banana em que eu pisei, escorreguei, quase caí, mas a turma lá de trás gritou, tem nego bebo aí, tem nego bebo aí!" Tinha mesmo muito nego bebo, ou só um pouco, zonzo, ou vomitando com prise de lança-perfume, caído na calçada cantando baixinho. Eram geralmente os que não tinham jeito para o Carnaval, os que assistiam de pé em volta do salão, os que não acreditavam na pureza essencial e comunicativa da festa, aqueles que congelavam as bundas das odaliscas com éter, beliscavam as baianas, querendo acordar as folionas para o namoro, arrancá-las daquela sensação de perdidas na alegria, na liberdade... Aquele cúmulo de felicidade molhado de suor e guaraná e entupido de reles sanduíches se acabava na quarta com a lenta "E as pastorinhas...".


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