|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Nos velhos carnavais, servia-se guaraná morno
NINA HORTA
Colunista da Folha
Fui procurar nos guardados alguma foto de carnavais passados.
Achei um corso ou outro da época
dos pais e uma tia muito jovem
fantasiada de Eva com cabelos pretos naturais caindo até os joelhos,
olhar deprimido e lânguido. Atrás,
escrito com a letra do irmão, o
mais implicante de um sexteto de
irmãos implicantes: "Guardar com
urgência. Pode alcançar 1 milhão
de dólares num leilão de chocaria".
"Chocaria" no jargão dos Guimarães significava sem-graceza, pouca pimenta.
Ouço discos de modinhas para
ver o quanto se falava de comida,
nas letras. "Mamãe eu quero, mamãe, eu quero mamar" era o hino
carnavalesco, e sintetizava todas as
fomes. De quando em quando surge um pedreiro Valdemar que levava a marmita envolta no jornal e
se tinha almoço nem sempre o jantar era garantido. Muitas queixas
sobre a vida cotidiana. "E o que me
cansa é pensar que lá em casa não
tem água nem pra cozinhar!" Os
elogios às morenas faceiras, às mulatas dengosas, às loiras de cristal
vinham muitas vezes expressos em
metáforas comestíveis. "Menina,
você é um doce-de-coco, tá me deixando louco, tá me deixando louco!" O Carnaval de salão era uma
festa familiar, talvez por isso seu
sucesso. Todos estavam incluídos
na folia, velhos, moços, crianças,
agregados.
Nas matinês infantis
pais e mães carregavam ao pescoço as tirolesas, os índios, ciganas, bailarinas, havaianas formando futuros foliões. E aproveitavam para flertar
um pouco. As crianças, olho vivo, não
deixavam passar nada, Édipos acesos...
Bebia-se muito guaraná morno. Toneladas. Lembro assim de
longe, nas brumas, do
clube Harmonia, fresco, gostoso de brincar
. Do Municipal dourado e de um baile infantil lá, animado por Luiz Gonzaga,
que chegou estrebuchando baixinho, morto de raiva por ter sido
chamado às pressas para quebrar
um galho inesperado. E dançamos
ao som de "Asa Branca" e da sanfona divididos por uma corda entre
grandes e pequenos.
O que se comia nesses bailecos?
Com uns trocados na mão ia-se até
o bar pedir alguma coisa para beber. Comer, quase impossível.
Muita gente, poucos garçons suados, Allah-la-ôôô, mas que calor,
ô,ô,ô. Grande era a alegria quando chegava à
mesa um prato de sanduíches frios e finos,
de presunto e queijo.
Não deixavam memória. Eram pretextos.
Queríamos comer o
mundo. A comida era
o próprio Carnaval.
Naqueles dez dias
(havia os pré-carnavalescos) não era hora de
paladares aguçados ou
satisfeitos e sim de
cheiro de Rodo metálico, das texturas secas e
empoeiradas do confete grudando na garganta, da serpentina
enrolada no pescoço,
olhos ardendo de lança-perfume.
Suávamos a infância e a adolescência naquela festa, dançávamos
todas as fantasias e desejos que
nasciam ainda informes. Comer,
para quê? Seria perder minutos indispensáveis, críticos, renovadores, totalmente relevantes para a
alegre educação de
nosso corpo e nossa
alma.
Com o correr
dos anos os
filhos
cresciam e
se juntavam aos pais
no mesmo
baile. Esplanada, Homs,
Paulistano, Pinheiros. Ao
guaraná morno acrescentava-se
uísque, champanhe e
cerveja. Gelo, gelo, meu
reino por um balde de gelo.
Se as marchas e sambas omitiam
a comida cantavam mesmo a bebida. "Você pensa que cachaça é
água, cachaça não é água, não. Cachaça vem do alambique, e água
vem do ribeirão. Pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão. Pode
me faltar manteiga e tudo mais faz
falta não. Só não quero que me falte a gostosa da cachaça!"
Uma noite, no Esplanada, nós,
duas meninas adolescentes, nos
preocupamos com os pais cheios
de juízo, que haviam ido sem as
mulheres tomar conta das filhas.
"Ai, ai, brotinho! Não cresças meu
brotinho nem murches como a
flor." Corremos o salão que estávamos e nada. No outro, achamos os
dois, sobre a mesa, braços levantados, dedos indicadores para cima,
mergulhados nas "as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver
sobrar, eu passo a mão na saca saca-rolha e bebo até me afogar!".
Era assim. "Foi numa casca de
banana em que eu pisei, escorreguei, quase caí, mas a turma lá de
trás gritou, tem nego bebo aí, tem
nego bebo aí!" Tinha mesmo muito nego bebo, ou só um pouco,
zonzo, ou vomitando com prise de
lança-perfume, caído na calçada
cantando baixinho. Eram geralmente os que não tinham jeito para o Carnaval, os que assistiam de
pé em volta do salão, os que não
acreditavam na pureza essencial e
comunicativa da festa, aqueles que
congelavam as bundas das odaliscas com éter, beliscavam as baianas, querendo acordar as folionas
para o namoro, arrancá-las daquela sensação de perdidas na alegria,
na liberdade... Aquele cúmulo de
felicidade molhado de suor e guaraná e entupido de reles sanduíches se acabava na quarta com a
lenta "E as pastorinhas...".
Texto Anterior: Miami recebe cozinha mineira Próximo Texto: Restaurante Crítica - Josimar Melo: Napoleone esbanja luxo em caro cardápio Índice
|