São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2001

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ANÁLISE

Melhores momentos de uma arte decorrem da desvinculação do poder

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Desde os anos 50 o cinema brasileiro não teve uma década tão estranha quanto a de 90. Começou com o fechamento da Embrafilme, no primeiro dia do governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello (90-92). O pessoal do cinema odeia Collor por isso. Na verdade, é uma medida que poderia ter engrandecido esse governo, não fosse ela de plena má-fé.
Collor não queria acabar com a Embrafilme, e sim com o cinema do Brasil. Foi o que se pode chamar de tiro pela culatra: o fim da empresa acabou colocando o cinema em relevo e abriu espaço para a necessidade do debate sobre produção de imagens do país.
Mais: se por fatos reais ou imaginários o cinema era estigmatizado pela mídia, virou subitamente vítima. E todo mundo tem simpatia pelas vítimas. Se, logo após o fim da Embrafilme a produção estancou, filmes que surgem em meados da década demonstram uma vitalidade exemplar, como a significar que o desejo de mostrar imagens não sucumbiria tão fácil. Em geral, esses são os melhores momentos de uma arte: quando sua vinculação ao poder é mínima ou, de preferência, inexiste.
É aí que surgem as promessas mais significativas do cinema brasileiro nesta década: Lirio Ferreira e Paulo Caldas ("Baile Perfumado"), Tata Amaral ("Um Céu de Estrelas") e Beto Brant ("O Matador"), entre outros. Ou quando se confirma o talento de um Ugo Giorgetti ("Sábado"). No Rio, Walter Lima vem com "O Monge e a Filha do Carrasco". Em São Paulo, Carlos Reichenbach aparece com "Alma Corsária".
São filmes imperfeitos, quase sempre arrancados do nada, feitos na raça e destinados a público nenhum (pois o hábito de ver filmes nacionais se perdera e os cinemas praticamente não os exibiam). Mas é da imperfeição e da precariedade que esses filmes tiram boa parte de seu encanto.
A segunda metade da década é, como gosta de chamar o MinC, de "retomada". Portanto, de política. A Lei do Audiovisual passa a funcionar. Os recursos abundam. Os filmes passam por um período de acentuado aperfeiçoamento técnico. E de corrida ao Oscar! Como o novo rico que se enche de adornos sem perceber o ridículo da coisa, não raro os filmes passam a ostentar produção e a cortejar desavergonhadamente o público.
A média da produção decai, apesar das exceções. A mais evidente é "Central do Brasil". Feito num momento em que o Real ia de vento em popa (ou parecia ir), esse foi o filme de um país em busca de sua regeneração. Oportuno, mas não oportunista, o que de fato interessa ali é a sincera e obstinada busca do pai. Ela faz a força do filme, para além de reservas que possa suscitar. Menos evidentes, não raro muito atacados, são "Orfeu", de Carlos Diegues, e "O Viajante",de Paulo Cesar Saraceni (que acredito ser a obra-prima brasileira da década). Um é cinema-espetáculo. O outro, cinema novo ortodoxo.
Do ponto de vista político, a segunda metade da década assistiu à ascensão e queda do modelo de financiamento por renúncia fiscal. Chegou-se hoje ao ponto central da questão: como fazer filmes (e querer que sejam lucrativos) se não há exibição consistente para eles? Nessa hora entra a TV. Como estabelecer contato com ela, sem fazer do cinema seu apêndice é o maior abacaxi que terá de ser descascado no novo século.


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