São Paulo, sábado, 12 de março de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Retrato do Brasil: ficamos bem de Rosa?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Mundo em torvelinho, o sertão de Guimarães Rosa (1908-1967) multiplica e confunde margens que a crítica e os leitores não hesitam em ocupar, ora escavando-as, em busca de decifração, ora recobrindo-as com um sem-número de interpretações, mais ou menos arbitrárias.
"O Brasil de Rosa: O Amor e o Poder", de Luiz Roncari, entrega-se a uma tarefa bem mais precisa e complexa: a de pensar o conjunto de seus primeiros livros (de "Sagarana", de 1946, a "Corpo de Baile" e "Grande Sertão: Veredas", ambos de 1956) como retrato de um país que, nos atropelos da vida pública e nos arranjos da vida privada, experimentava, ao longo da Primeira República, uma modernização conservadora.
Não deixa de ser sintomático da importância desse filão crítico (que tem suas raízes nas leituras pioneiras de Antonio Candido e Walnice Nogueira Galvão) que o lançamento quase coincida com o de "Grandesertão.br", de Willi Bolle, que, também uspiano e professor, como Roncari, enfrenta o autor mineiro com armas afins e conclusões diversas.
A especificidade de "O Brasil de Rosa" está na sua solução para a complexa equação da forma na ficção rosiana, muito distante do mero realismo etnográfico. O autor atribui peso estrutural à apropriação que Guimarães faz da mitologia greco-romana, ressaltando uma terceira camada significativa, alegórica, em que a história aparece não mais como matéria vertente, mas de maneira críptica, como enigmas a desvendar.
Esta busca pela interpretação nos cruzamentos entre os três pilares da narrativa rosiana -o da atualidade da experiência, o mítico-simbólico e o alegórico-histórico- serve-se de um estilo ensaístico que não hesita em recorrer às citações e às paráfrases críticas, explicitando os passos e os riscos assumidos pelos saltos interpretativos.
Dois contos pouco estudados de "Sagarana", "A Volta do Marido Pródigo" e "São Marcos" permitiram ao autor armar os problemas críticos que orientam sua visão da obra do primeiro Rosa: o quanto o criador de Riobaldo deixou-se impregnar pelo pensamento social dos autores que se ocupavam do embate entre ordem e desordem dos primeiros anos republicanos no Brasil (particularmente, pela leitura de Oliveira Viana) e a posição tensa que, como narrador erudito, representante da alta cultura, e matuto por origem e gosto, assumiu em relação ao universo popular que expressava.
Conduzem o livro à leitura de episódios decisivos de "Grande Sertão: Veredas" (como o do tribunal jagunço) e a uma minuciosa aproximação de alguns de seus heróis paradigmáticos.
Na imagem sugestiva de uma orfandade transitória -uma nação ainda guardando luto envergonhado pelo imperador das respeitáveis barbas brancas e na expectativa (pai morto, pai posto) da respeitável barriguinha do bonachão de São Borja-, Roncari sintetiza o sentimento de indefinição que parecia acompanhar os conflitos que se travavam no sertão, entre um poder local, costumeiro, cujo braço armado e violento são os jagunços, e um Estado remoto e centralizador, empenhado em submetê-lo a um código escrito e universal pela força, se necessário.
Figuras da labilidade e da mobilidade, como a da personagem do mulato Lalino Salãthiel, o marido pródigo, ou da ordem de relações amorosas mais ou menos informais que Lélio, de "No Urubuquaquá, no Pinhém", conhece nas cercanias da casa-grande, interessam sobremaneira ao criador de Riobaldo e, por extensão, a Roncari, seu intérprete. O mural de leituras que arma para a decifração de sua tipicidade impressiona e esclarece.
Talvez seja menos fácil acompanhá-lo quando radica na intenção consciente do escritor a vontade de seguir ideologicamente, para não dizer ilustrar os ensaístas que, ao seu modo, também expressam pela trama do conceito as mesmas contradições brasileiras. As projeções de um autor matreiro como Rosa em seus textos certamente são menos inequívocas, sugestão que, aliás, o próprio quadro impressionante montado com segurança por Roncari, rico em suas contradições, sustenta.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

O Brasil de Rosa: O Amor e o Poder
    
Autor: Luiz Roncari
Lançamento: Editora da Unesp/Fapesp
Quanto: R$ 45 (348 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Cinema: Mar del Plata cria vitrine para o Oriente
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.