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RODAPÉ
Retrato do Brasil: ficamos bem de Rosa?
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Mundo em torvelinho, o sertão de Guimarães Rosa
(1908-1967) multiplica e confunde
margens que a crítica e os leitores
não hesitam em ocupar, ora escavando-as, em busca de decifração,
ora recobrindo-as com um sem-número de interpretações, mais
ou menos arbitrárias.
"O Brasil de Rosa: O Amor e o
Poder", de Luiz Roncari, entrega-se a uma tarefa bem mais precisa e
complexa: a de pensar o conjunto
de seus primeiros livros (de "Sagarana", de 1946, a "Corpo de Baile" e "Grande Sertão: Veredas",
ambos de 1956) como retrato de
um país que, nos atropelos da vida pública e nos arranjos da vida
privada, experimentava, ao longo
da Primeira República, uma modernização conservadora.
Não deixa de ser sintomático da
importância desse filão crítico
(que tem suas raízes nas leituras
pioneiras de Antonio Candido e
Walnice Nogueira Galvão) que o
lançamento quase coincida com o
de "Grandesertão.br", de Willi
Bolle, que, também uspiano e
professor, como Roncari, enfrenta o autor mineiro com armas
afins e conclusões diversas.
A especificidade de "O Brasil de
Rosa" está na sua solução para a
complexa equação da forma na
ficção rosiana, muito distante do
mero realismo etnográfico. O autor atribui peso estrutural à apropriação que Guimarães faz da mitologia greco-romana, ressaltando uma terceira camada significativa, alegórica, em que a história
aparece não mais como matéria
vertente, mas de maneira críptica,
como enigmas a desvendar.
Esta busca pela interpretação
nos cruzamentos entre os três pilares da narrativa rosiana -o da
atualidade da experiência, o mítico-simbólico e o alegórico-histórico- serve-se de um estilo ensaístico que não hesita em recorrer às citações e às paráfrases críticas, explicitando os passos e os
riscos assumidos pelos saltos interpretativos.
Dois contos pouco estudados de
"Sagarana", "A Volta do Marido
Pródigo" e "São Marcos" permitiram ao autor armar os problemas
críticos que orientam sua visão da
obra do primeiro Rosa: o quanto
o criador de Riobaldo deixou-se
impregnar pelo pensamento social dos autores que se ocupavam
do embate entre ordem e desordem dos primeiros anos republicanos no Brasil (particularmente,
pela leitura de Oliveira Viana) e a
posição tensa que, como narrador
erudito, representante da alta cultura, e matuto por origem e gosto,
assumiu em relação ao universo
popular que expressava.
Conduzem o livro à leitura de
episódios decisivos de "Grande
Sertão: Veredas" (como o do tribunal jagunço) e a uma minuciosa aproximação de alguns de seus
heróis paradigmáticos.
Na imagem sugestiva de uma
orfandade transitória -uma nação ainda guardando luto envergonhado pelo imperador das respeitáveis barbas brancas e na expectativa (pai morto, pai posto)
da respeitável barriguinha do bonachão de São Borja-, Roncari
sintetiza o sentimento de indefinição que parecia acompanhar os
conflitos que se travavam no sertão, entre um poder local, costumeiro, cujo braço armado e violento são os jagunços, e um Estado remoto e centralizador, empenhado em submetê-lo a um código escrito e universal pela força, se
necessário.
Figuras da labilidade e da mobilidade, como a da personagem do
mulato Lalino Salãthiel, o marido
pródigo, ou da ordem de relações
amorosas mais ou menos informais que Lélio, de "No Urubuquaquá, no Pinhém", conhece nas
cercanias da casa-grande, interessam sobremaneira ao criador de
Riobaldo e, por extensão, a Roncari, seu intérprete. O mural de
leituras que arma para a decifração de sua tipicidade impressiona
e esclarece.
Talvez seja menos fácil acompanhá-lo quando radica na intenção
consciente do escritor a vontade
de seguir ideologicamente, para
não dizer ilustrar os ensaístas que,
ao seu modo, também expressam
pela trama do conceito as mesmas
contradições brasileiras. As projeções de um autor matreiro como
Rosa em seus textos certamente
são menos inequívocas, sugestão
que, aliás, o próprio quadro impressionante montado com segurança por Roncari, rico em suas
contradições, sustenta.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
O Brasil de Rosa: O Amor e o Poder
Autor: Luiz Roncari
Lançamento: Editora da Unesp/Fapesp
Quanto: R$ 45 (348 págs.)
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