São Paulo, sábado, 12 de março de 2005

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LIVROS

POESIA

Lançada no Brasil "Canções da Inocência e da Experiência", famosa obra do inglês

Edição bilíngüe traz canções do visionário William Blake

RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Figura inclassificável da literatura mundial, o poeta, gravador, pintor e impressor inglês William Blake (1757-1827) tem pela primeira vez publicada no Brasil uma edição integral de um de seus livros mais famosos, "Canções da Inocência e da Experiência". O volume traz poemas clássicos do bardo visionário, como "O Limpador de Chaminés", "Uma Planta Venenosa", "Londres", "Ah, Girassol", "A Rosa Doente" e, claro, "O Tigre", seu poema mais conhecido.
Editar a poesia de Blake oferece, de cara, um problema. O ideal seria publicar as canções como foram concebidas pelo artista: como iluminuras, onde o texto, o desenho e a pintura mantêm íntimas relações entre si. Mas isso não diminui a importância desta publicação.
Escrito num tempo em que o autor testemunhava, atordoado, pelo menos três grandes revoluções -a industrial, a francesa e a americana- as canções de "inocência" formam uma imagem complementar com as canções de "experiência". E preparam o terreno para as grandes experiências de sua obra mais polêmica, escrita posteriormente.
As primeiras cantigas são escritas em linguagem "ingênua", ao modo dos hinos de igreja e das "nursery rhymes", baseadas na repetição, na espontaneidade e no vocabulário simples, características recuperadas na tradução. Blake, no entanto, já rompe com as convenções do gênero das cantigas de criança. Como lembra Maria Esther Maciel na introdução: "O ingênuo, nesse caso, tem função subversiva: desafiar as exigências da racionalidade imperante, fazendo emergir uma infantilidade desconcertante em um lugar e um contexto em que ela já não é esperada". O poeta usava de ritmos e de toda uma convenção de poesia infantil para lançar as bases de sua crítica corrosiva -social e, sim, política- que atingirá sua força máxima nos poemas proféticos da última fase. Um ataque veemente ao trabalho escravo infantil, por exemplo, ocorre nas duas versões de "O Limpador de Chaminés". Na primeira estrofe, o narrador mirim denuncia: "Quando mamãe morreu eu era bem moleque, / E ao vender-me meu pai, minha língua a custo é que / gritava "arre "arre "arre "arre-dor: / Durmo em fuligem, das chaminés sou varredor". Já servindo de contraponto "adulto", as canções da experiência, em linguagem mais madura, denunciam o racismo, as injustiças sociais e a pobreza decorrentes do industrialismo.
Solenemente ignorado em seu tempo, tendo vivido e morrido na pobreza, fazendo seus próprios livros artesanalmente, Blake acreditava que a poesia tinha uma missão profética e visionária. Bem diferente do cinismo e materialismo contemporâneos, quando muitos escritores e críticos parecem não acreditar mais no poder transformador da palavra, Blake acreditava na real possibilidade de transformar o mundo através da poesia e da imaginação. E foi chamado de "louco".
Em tempos em que a pose parece ser mais importante que a poesia, em que a "imaginação" é substituída pelo consumo, vale a pena reler o poeta para quem "energia era delícia eterna", alguém que foi capaz de ver o infinito num grão de areia.


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Nômada" (Lamparina) e "Mindscapes: Poemas de Laura Riding" (Iluminuras).

Canções da Inocência e da Experiência
   
Autor: William Blake
Tradução: Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves
Editora: Crisálida
Quanto: R$ 23 (152 págs., edição bilíngüe português/ inglês)


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