São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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CRÍTICA

"Alma Gêmea" e o neo-obscurantismo

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Não é de hoje que o horário das seis da Globo concentra novelas com um forte componente antiquado, seja por serem de época, seja por se ambientarem no universo rural ou de pequenas cidades, seja por combinarem os dois. O clima invariavelmente retrô, ingênuo e romântico dessas novelas vem elevando a audiência do horário -descrito pelos "mercadólogos" como composto basicamente por aquelas mulheres que ainda são exclusivamente donas-de-casa e crianças.
"Alma Gêmea" deu um passo além, ao introduzir o misticismo na equação, nessa tendência ao atraso que vem sendo explorada pela novela. Aliás, nesse sentido, a novela que acabou de acabar foi um primor, com elementos francamente neo-obscurantistas como reencarnação, idéia de destino, a crença num amor imorredouro. Isso e as caracterizações desastradas do núcleo de caipiras caricatos e da heroína semi-indígena (?!) deram à novela um inequívoco ar cafona.
Ao longo de mais de 200 capítulos, "Alma Gêmea" contou a história de alma arrebatada pela violência do mundo dos vivos que reencarna numa bebê de pai português e mãe indígena que está nascendo. Ao crescer, a indiazinha de olhos verdes tem visões que a levam para o viúvo da moça morta. Claro que, nessa jornada em direção ao seu destino, o viúvo inconsolável e a indiazinha serão atrapalhados por toda a sorte de vilões.
É praticamente um mantra da indústria cultural se justificar dizendo que dá o que público quer; uma leitura apressada pode considerar que é exatamente isso que se faz. Mas será que, ao contrário, o mecanismo é de tal forma perverso que o público passa a querer aquilo que se imagina que deva ser dado?
A ordem dos fatores, nesse caso, faz a maior diferença. Numa hipótese, trabalha-se com a idéia de que a ignorância e os preconceitos do público é que fazem a qualidade suspeita de algumas produções; invertendo os termos, tem-se uma situação em que os propósitos ideológicos e estéticos (conscientes ou não) de quem produz criam padrões de qualidade e, sobretudo, limites para aquilo que se oferece. Nessa segunda formulação, há um pressuposto de merecimento, ou seja, como se existisse alguém pensando: "Fazemos uma novela atrasada, tonta e neo-obscurantista porque é isso que as donas-de-casa querem e, mais, é exatamente isso -e só isso - que elas merecem".
O diabo é que o gosto, que se discute sim, tem mecanismos mais complexos e autônomos. Mesmo considerando que a torcida pelos vilões -nesse caso, uma vilã tão bem talhada que até deu uma sobrevida à carreira, de resto inexpressiva, de Flávia Alessandra - seja uma resposta clássica em qualquer novela, o fato da malvadona estar concentrando todas as atenções pode indicar que a aposta no ultra-romantismo tenha sido excessiva e deslocada.


@ - biabramo.tv@uol.com.br


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