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CRÍTICA
"Alma Gêmea" e o neo-obscurantismo
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
Não é de hoje que o horário
das seis da Globo concentra
novelas com um forte componente antiquado, seja por serem
de época, seja por se ambientarem no universo rural ou de pequenas cidades, seja por combinarem os dois. O clima invariavelmente retrô, ingênuo e romântico dessas novelas vem elevando a audiência do horário
-descrito pelos "mercadólogos" como composto basicamente por aquelas mulheres que
ainda são exclusivamente donas-de-casa e crianças.
"Alma Gêmea" deu um passo
além, ao introduzir o misticismo
na equação, nessa tendência ao
atraso que vem sendo explorada
pela novela. Aliás, nesse sentido,
a novela que acabou de acabar foi
um primor, com elementos francamente neo-obscurantistas como reencarnação, idéia de destino, a crença num amor imorredouro. Isso e as caracterizações
desastradas do núcleo de caipiras
caricatos e da heroína semi-indígena (?!) deram à novela um inequívoco ar cafona.
Ao longo de mais de 200 capítulos, "Alma Gêmea" contou a
história de alma arrebatada pela
violência do mundo dos vivos
que reencarna numa bebê de pai
português e mãe indígena que está nascendo. Ao crescer, a indiazinha de olhos verdes tem visões
que a levam para o viúvo da moça morta. Claro que, nessa jornada em direção ao seu destino, o
viúvo inconsolável e a indiazinha
serão atrapalhados por toda a
sorte de vilões.
É praticamente um mantra da
indústria cultural se justificar dizendo que dá o que público quer;
uma leitura apressada pode considerar que é exatamente isso
que se faz. Mas será que, ao contrário, o mecanismo é de tal forma perverso que o público passa
a querer aquilo que se imagina
que deva ser dado?
A ordem dos fatores, nesse caso, faz a maior diferença. Numa
hipótese, trabalha-se com a idéia
de que a ignorância e os preconceitos do público é que fazem a
qualidade suspeita de algumas
produções; invertendo os termos, tem-se uma situação em
que os propósitos ideológicos e
estéticos (conscientes ou não) de
quem produz criam padrões de
qualidade e, sobretudo, limites
para aquilo que se oferece. Nessa
segunda formulação, há um
pressuposto de merecimento, ou
seja, como se existisse alguém
pensando: "Fazemos uma novela
atrasada, tonta e neo-obscurantista porque é isso que as donas-de-casa querem e, mais, é exatamente isso -e só isso - que elas
merecem".
O diabo é que o gosto, que se
discute sim, tem mecanismos
mais complexos e autônomos.
Mesmo considerando que a torcida pelos vilões -nesse caso,
uma vilã tão bem talhada que até
deu uma sobrevida à carreira, de
resto inexpressiva, de Flávia
Alessandra - seja uma resposta
clássica em qualquer novela, o fato da malvadona estar concentrando todas as atenções pode indicar que a aposta no ultra-romantismo tenha sido excessiva e
deslocada.
@ - biabramo.tv@uol.com.br
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