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Que mistério tem o poder?
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Fidel Castro está há 40 anos
no poder e não pensa em sair.
A Assembléia Nacional cubana acaba de reelegê-lo, por
unanimidade, para um novo
mandato presidencial de cinco
anos. Se houver algum imprevisto com ele, quem deve assumir o cargo é Raul, seu irmão
mais novo. A revolução comunista cubana, quem diria, começou com idealismo e abnegação para terminar em ditadura vitalícia e dinastia familiar. Culpa do embargo.
O segundo colocado no ranking da longevidade no poder
é o general Suharto, da Indonésia. Desde que assumiu o poder por meio de um golpe militar em 1966, ele vem se reconduzindo ao cargo em rituais
eleitorais periódicos, nos quais
o seu partido enfrenta e esmaga a "oposição consentida". Ao
encerrar este mês o sexto mandato, Suharto apresentou-se
como candidato único nas
eleições para um novo governo
de cinco anos. Um filho do general anunciou, contudo, que
esta é a última vez que o pai,
de 76 anos, concorre ao cargo.
O desejo de se perpetuar no
poder é tão antigo quanto os
faraós do Egito. Levado ao paroxismo em regimes ditatoriais, ele não está de forma alguma ausente nas democracias. O princípio da renovação
periódica dos governantes, por
meio do voto universal e secreto, permite disciplinar e conter
as manifestações mais grotescas e abusivas desse impulso,
mas está longe de impedir que
ele governe as ações e os corações dos aspirantes a cargos
públicos.
Exemplos disso são o atual
chanceler alemão, Helmut
Kohl, que está no poder há 16
anos e prepara-se para disputar em setembro o seu quinto
mandato sucessivo e, mais perto de casa, os indícios a cada
dia mais fortes de que tanto
Menem quanto Fujimori não
apenas sonham com um terceiro mandato, como estão dispostos a entrar em campo para
pressionar por novas mudanças nas regras do jogo, de modo a garantir uma vaga na disputa sucessória. O nosso FHC,
quem há de negar, consumiu
uma bela fatia do seu primeiro
mandato batalhando pelo direito de concorrer a um segundo.
Que mistério tem o poder?
Quem o tem não quer largar;
quem não o tem quer chegar
lá; quem o perdeu quer voltar.
"Para aqueles que se habituaram à posse da admiração pública ou mesmo à esperança de
conquistá-la", observa Adam
Smith, "todos os demais prazeres empalidecem e definham".
O poder é um tônico que revigora, um afrodisíaco que excita e rejuvenesce. Alguns comparam-no a uma droga, outros
a um elixir. Descobertas recentes no campo da neurociência
revelam que metáforas como
essas podem conter uma dose
maior de verdade do que sonha a nossa vã filosofia.
A novidade é a constatação
de que o exercício do poder em
suas diferentes esferas de atuação -não apenas na política,
mas na relação de autoridade
em empresas e organizações
em geral- altera de um modo
específico a bioquímica do cérebro, estimulando a produção
do neurotransmissor serotonina, o hormônio que regula, ao
lado de outros fatores, o humor, a impetuosidade, a auto-estima, a memória e a
agressividade do indivíduo. Se
"todo poder corrompe", como
sugere lorde Acton, parte da
explicação pode advir do fato
de que ele agita e sacode a bioquímica cerebral de quem o alcança.
Assim como o álcool e os modernos antidepressivos, o poder teria o dom de liberar serotonina no sistema nervoso de
quem o exerce e, desse modo,
tornar a pessoa mais disposta,
confiante, auto-afirmativa e
satisfeita em ser quem é. O ostracismo e a perda do poder,
ao contrário, trariam uma espécie de síndrome de abstinência, lançando o indivíduo à
sarjeta subjetiva de uma apagada e vil tristeza e à idéia fixa
de voltar. Afinal, como dizia
Freud, "quem compreende a
mente humana sabe que nada
é tão difícil para o homem
quanto abdicar de um prazer
que já experimentou".
A microquímica do poder
traz achados e pistas valiosos,
mas ela é uma peça apenas no
formidável quebra-cabeça do
apetite humano por status e
autoridade. Uma coisa é dizer
que o poder tem efeitos neurológicos mensuráveis e cria certa dependência no sujeito. Outra, muito distinta, é supor que
isso por si só explique por que o
poder sempre exerceu tal fascínio sobre o animal humano
(mesmo entre aqueles que jamais obtiveram dele uma só
migalha) e por que o apetite de
alguns pode atingir proporções
monstruosas.
Outra modalidade, mais popular, de reducionismo é a
"teoria da mastigação" -a
noção de que a motivação básica de quem busca o poder é,
no fundo, colocar alguma coisa bem apetitosa e suave entre
os dentes, algo que se possa de
preferência morder, apertar e
degustar. O cargo público de
relevo seria, nessa visão, o passaporte do benefício privado
no sentido mais prosaico e
"clintoniano" do termo.
A melhor formulação que conheço da teoria da mastigação
é devida ao líder revolucionário francês Danton: "Manjares
deliciosos, bebidas maravilhosas, as mulheres dos nossos sonhos, eis o que o poder conquista quando você o agarra!".
Pasárgada é aqui.
O problema com essa tese é
que, embora ela contenha um
evidente grão de verdade em
alguns casos, ela não explica a
tara de líderes como o incorruptível Robespierre (que perseguiu e executou o "bon vivant" Danton por corrupção),
o puritano Cromwell ou o aiatolá Khomeini. A figura do ditador asceta, de conduta pessoal tão monástica quanto um
pastor calvinista, é personagem comum nos anais da história. Nosso JK, ao que tudo
indica, era mais adepto da
mastigação do que o frugal e
austero, mas nem por isso menos faminto de poder absoluto,
Getúlio Vargas.
É duvidoso que o enigma do
apetite pelo poder possa ser
desvendado por alguma descoberta científica pontual ou nova teoria geral do comportamento humano. De tudo o que
tenho lido sobre o tema, fico
com a impressão de que é num
curioso episódio narrado por
Plutarco nas "Vidas Paralelas"
que mais nos aproximamos do
coração do mistério.
O conselheiro favorito de Pirro, rei de Épiro, vendo-o em
plena preparação para invadir
território romano, aproxima-se dele e indaga o que ele
pretende fazer depois de lograr
o seu intento. O rei responde
que o próximo alvo será a Sicília. "E depois dela?", pergunta
o conselheiro. Pirro então afirma que, uma vez tomada a Sicília, ele pretende conquistar
Líbia e Cartago como etapas
para a dominação definitiva
da Grécia e da Macedônia.
O conselheiro, porém, não se
dá por satisfeito. "Mas tendo
atingindo todos esses objetivos", indaga, "tendo subjugado todos esses povos e reinos ao
seu poder, o que o senhor pretende fazer depois disso?"
"Quando tiver por fim terminado a conquista", replica o
rei sorrindo, "aí nós poderemos gozar a vida, beber, comer
e conversar o dia inteiro com
os amigos." O conselheiro, perplexo, exclama: "Mas se é isso
que o senhor almeja, o que o
impede de fazê-lo desde já?
Vamos começar agora mesmo!".
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