São Paulo, quinta, 12 de março de 1998

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Que mistério tem o poder?

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Fidel Castro está há 40 anos no poder e não pensa em sair. A Assembléia Nacional cubana acaba de reelegê-lo, por unanimidade, para um novo mandato presidencial de cinco anos. Se houver algum imprevisto com ele, quem deve assumir o cargo é Raul, seu irmão mais novo. A revolução comunista cubana, quem diria, começou com idealismo e abnegação para terminar em ditadura vitalícia e dinastia familiar. Culpa do embargo.
O segundo colocado no ranking da longevidade no poder é o general Suharto, da Indonésia. Desde que assumiu o poder por meio de um golpe militar em 1966, ele vem se reconduzindo ao cargo em rituais eleitorais periódicos, nos quais o seu partido enfrenta e esmaga a "oposição consentida". Ao encerrar este mês o sexto mandato, Suharto apresentou-se como candidato único nas eleições para um novo governo de cinco anos. Um filho do general anunciou, contudo, que esta é a última vez que o pai, de 76 anos, concorre ao cargo.
O desejo de se perpetuar no poder é tão antigo quanto os faraós do Egito. Levado ao paroxismo em regimes ditatoriais, ele não está de forma alguma ausente nas democracias. O princípio da renovação periódica dos governantes, por meio do voto universal e secreto, permite disciplinar e conter as manifestações mais grotescas e abusivas desse impulso, mas está longe de impedir que ele governe as ações e os corações dos aspirantes a cargos públicos.
Exemplos disso são o atual chanceler alemão, Helmut Kohl, que está no poder há 16 anos e prepara-se para disputar em setembro o seu quinto mandato sucessivo e, mais perto de casa, os indícios a cada dia mais fortes de que tanto Menem quanto Fujimori não apenas sonham com um terceiro mandato, como estão dispostos a entrar em campo para pressionar por novas mudanças nas regras do jogo, de modo a garantir uma vaga na disputa sucessória. O nosso FHC, quem há de negar, consumiu uma bela fatia do seu primeiro mandato batalhando pelo direito de concorrer a um segundo.
Que mistério tem o poder? Quem o tem não quer largar; quem não o tem quer chegar lá; quem o perdeu quer voltar. "Para aqueles que se habituaram à posse da admiração pública ou mesmo à esperança de conquistá-la", observa Adam Smith, "todos os demais prazeres empalidecem e definham". O poder é um tônico que revigora, um afrodisíaco que excita e rejuvenesce. Alguns comparam-no a uma droga, outros a um elixir. Descobertas recentes no campo da neurociência revelam que metáforas como essas podem conter uma dose maior de verdade do que sonha a nossa vã filosofia.
A novidade é a constatação de que o exercício do poder em suas diferentes esferas de atuação -não apenas na política, mas na relação de autoridade em empresas e organizações em geral- altera de um modo específico a bioquímica do cérebro, estimulando a produção do neurotransmissor serotonina, o hormônio que regula, ao lado de outros fatores, o humor, a impetuosidade, a auto-estima, a memória e a agressividade do indivíduo. Se "todo poder corrompe", como sugere lorde Acton, parte da explicação pode advir do fato de que ele agita e sacode a bioquímica cerebral de quem o alcança.
Assim como o álcool e os modernos antidepressivos, o poder teria o dom de liberar serotonina no sistema nervoso de quem o exerce e, desse modo, tornar a pessoa mais disposta, confiante, auto-afirmativa e satisfeita em ser quem é. O ostracismo e a perda do poder, ao contrário, trariam uma espécie de síndrome de abstinência, lançando o indivíduo à sarjeta subjetiva de uma apagada e vil tristeza e à idéia fixa de voltar. Afinal, como dizia Freud, "quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou".
A microquímica do poder traz achados e pistas valiosos, mas ela é uma peça apenas no formidável quebra-cabeça do apetite humano por status e autoridade. Uma coisa é dizer que o poder tem efeitos neurológicos mensuráveis e cria certa dependência no sujeito. Outra, muito distinta, é supor que isso por si só explique por que o poder sempre exerceu tal fascínio sobre o animal humano (mesmo entre aqueles que jamais obtiveram dele uma só migalha) e por que o apetite de alguns pode atingir proporções monstruosas.
Outra modalidade, mais popular, de reducionismo é a "teoria da mastigação" -a noção de que a motivação básica de quem busca o poder é, no fundo, colocar alguma coisa bem apetitosa e suave entre os dentes, algo que se possa de preferência morder, apertar e degustar. O cargo público de relevo seria, nessa visão, o passaporte do benefício privado no sentido mais prosaico e "clintoniano" do termo.
A melhor formulação que conheço da teoria da mastigação é devida ao líder revolucionário francês Danton: "Manjares deliciosos, bebidas maravilhosas, as mulheres dos nossos sonhos, eis o que o poder conquista quando você o agarra!". Pasárgada é aqui.
O problema com essa tese é que, embora ela contenha um evidente grão de verdade em alguns casos, ela não explica a tara de líderes como o incorruptível Robespierre (que perseguiu e executou o "bon vivant" Danton por corrupção), o puritano Cromwell ou o aiatolá Khomeini. A figura do ditador asceta, de conduta pessoal tão monástica quanto um pastor calvinista, é personagem comum nos anais da história. Nosso JK, ao que tudo indica, era mais adepto da mastigação do que o frugal e austero, mas nem por isso menos faminto de poder absoluto, Getúlio Vargas.
É duvidoso que o enigma do apetite pelo poder possa ser desvendado por alguma descoberta científica pontual ou nova teoria geral do comportamento humano. De tudo o que tenho lido sobre o tema, fico com a impressão de que é num curioso episódio narrado por Plutarco nas "Vidas Paralelas" que mais nos aproximamos do coração do mistério.
O conselheiro favorito de Pirro, rei de Épiro, vendo-o em plena preparação para invadir território romano, aproxima-se dele e indaga o que ele pretende fazer depois de lograr o seu intento. O rei responde que o próximo alvo será a Sicília. "E depois dela?", pergunta o conselheiro. Pirro então afirma que, uma vez tomada a Sicília, ele pretende conquistar Líbia e Cartago como etapas para a dominação definitiva da Grécia e da Macedônia.
O conselheiro, porém, não se dá por satisfeito. "Mas tendo atingindo todos esses objetivos", indaga, "tendo subjugado todos esses povos e reinos ao seu poder, o que o senhor pretende fazer depois disso?" "Quando tiver por fim terminado a conquista", replica o rei sorrindo, "aí nós poderemos gozar a vida, beber, comer e conversar o dia inteiro com os amigos." O conselheiro, perplexo, exclama: "Mas se é isso que o senhor almeja, o que o impede de fazê-lo desde já? Vamos começar agora mesmo!".



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