São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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GASTRONOMIA
Como atravessar a Quaresma (com ou sem bacalhau)

NINA HORTA
Colunista da Folha

"Deixem-me saborear esta bacalhoada em perfeita inocência de espírito, como no tempo de dom João 5º antes da democracia e da crítica!"
Fradique Mendes

O leitor Amaury F. de Almeida me manda uma boa receita para dias magros, na forma de um e-mail que recebeu:
"Amaury, o seu frango caipira ao molho pardo me fez lembrar de uma lampreia de cabidela que nós comemos em 1980, na cidade do Porto.
"Tal iguaria só pode ser preparada por volta do mês de abril, quando as lampreias deixam as águas profundas e podem ser capturadas pelas redes dos pescadores. Os bichos são sangrados nos próprios barcos e o sangue misturado com um bom vinagre de vinho tinto. É um prato supimpa!
"O restaurante tem o nome de Montenegro, mas era conhecido como o restaurante da Mamuda (a proprietária dispunha de fartas mamas, como dizem por lá!). Do amigo, Froes."
Pena não podermos comer a lampreia da Mamuda, mas se pode inventar um bacalhau ou qualquer outro peixe ao vinho tinto.
Sempre tenho vontade de fazer uma receita contada por Jacques Médecin, um famoso prefeito de Nice, mas acho dificuldade em conseguir o bacalhau seco ao vento, dependurado no ar gelado -e não salgado-, prática usada pelos viquingues que vinham da Noruega, passavam pela Islândia e chegavam às águas piscosas de bacalhau. E daí, de posse da comida que não estragava fácil, saíam ao mundo para levar adiante suas sagas.
Na Dinamarca de hoje come-se o klipfisck, postas do peixe demolhadas, sem espinhas, cozidas, servidas com rodelas de ovo, raiz-forte ralada, beterraba e batatas cozidas. Acompanhando tudo, um molho branco feito com um fumê de peixe ou com a água em que se cozinhou o bacalhau.
Mas onde anda o prefeito de Nice, que motivou tal digressão? Conta ele que um velho pescador, de nome Barba Chiquin ("barba" significa tio; e "chiquín", alguém que bebe muito), chamava as crianças de Saint-Jean-Cap-Ferrat para testemunharem sua extraordinária performance na seguinte receita:
1) Pegar 100 g de bacalhau seco, mas não salgado, e colocá-lo numa pedra grande. Reduzi-lo a migalhas grosseiras com um machado.
2) Colocá-lo num almofariz e pisá-lo com quatro dentes de alho.
3) Aquecer azeite numa frigideira até soltar fumaça e nela dourar duas pimentas ardidas. Quando o óleo começar a soltar fumaça outra vez juntar a mistura de bacalhau seco e alho.
4) Dourar e imediatamente passar no pão preto e comer.
Mas nem só de lombo de bacalhau se vive bem. Na Grécia, uma especialidade famosa, uma delícia feita de pobres ingredientes correu mundo. É a taramosalata, pasta de ovas de bacalhau. Pode ser encontrada o ano inteiro, mas a época certa é durante a Quaresma, quando pode ser encontrada em todas as mesas gregas.
O genuíno é sempre feito em pão de molho em água e não no leite, leva um pouquinho de cebola ralada para dar um certo tchan, mas nunca alho, que esconde a delicadeza do paladar das ovas (tarama).
Aqui no Brasil, até outro dia podíamos encontrar as ovas de bacalhau defumadas ou salgadas, mas como são produto importado devem estar escasseando. Na falta do almofariz usa-se o processador velho de guerra.
Ingredientes: seis fatias de pão branco dormido, de preferência; 60 g de ovas salgadas ou 120 g de ovas defumadas (não encontrando ovas de bacalhau, substitui por ovas de outra peixe, como tainha); um limão suculento; uma chalota ou cebola pequena, em rodelas; 100 ml de azeite de oliva ou uma mistura metade óleo de milho, metade azeite; salsa picada e azeitonas pretas para enfeitar.
Pôr o pão sem casca na água por 10 min. Botar uma colher de tarama no processador, espremer o pão sem exagero, juntá-lo às ovas, com o limão, cebola e azeite e bater até tudo se transformar numa pasta rosada e cremosa. Experimente.
Mais limão? Menos pão? Arrume num prato e enfeite com a salsa e as azeitonas. É bom acompanhando um magro ensopado de lentilhas.
E assim, qual cisne branco em noite de lua, vamos navegando pela Quaresma, ou pela crise, ou pelos dias das vacas magras.


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