São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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RECEITAS DO MELLÃO
É melhor que sexo

HAMILTON MELLÃO JR.
Colunista da Folha

Comer é o mais cúmplice dos prazeres, embora os menos audaciosos ainda prefiram o sexo, um mero arremedo de prazer que faz suar, cansa, transmite doenças e, ainda por cima, perpetua esta nossa miserável espécie.
Aqueles que privilegiam o divino Dionísio à mesa sabem que o gozo é atingido tanto pela genuína complexidade de um alimento extremamente simples, quanto nos pratos de mirabolante e dificultosa execução. Sintetizando: o prazer maior é atingido somente quando existe a perfeição.
Para que esta conjunção anímica aconteça, algumas preliminares devem ser respeitadas. A primeira delas é a escolha do parceiro. Comer não é um ato onanista e partilhar o prato é muito do prazer. O silêncio entre os dois comensais deve ser aquele de um segundo antes do Big Bang. São aceitos, assim como incentivados, olhares, muxoxos e gestos.
Certos cuidados devem ser observados na expectativa do prazer: não fumar e não tomar bebidas espirituosas, distanciar-se de tabus e preconceitos alimentares, manter a espinha ereta e o coração tranquilo abrindo, assim, um canal para os cinco sentidos.
A língua, ao contrário do que pensa o vulgo, é o mais burro dos órgãos. Ela somente detecta sensações primárias, como o doce, salgado, amargo, quente e frio. O sensorial é muito mais completo no nariz, que tem uma ligação direta com o cérebro e, se bem treinado, pode distinguir até 7.000 odores. O olhar faz a complementação estética, embora muitos chefs ainda tenham o nariz como ponto de referência para a beleza.
O tato só é permitido entre os muito pobres ou os muito ricos, assim como o incesto, já que a classe média come até pastel com garfo e faca. Quanto à audição, é sistematicamente desprezada com o silêncio ambiente ou atormentada por músicas de aeroporto, como se ela não fosse coadjuvante inseparável da emoção.
Todo gourmet é um esteta em busca de harmonia. Fiz algumas tentativas de coadunar pratos clássicos com música, uma experiência fascinante que você deveria experimentar.
Trofeo, "Canção nº 9 a Oito Vozes": capeletti caseiro em brodo forte de galinha.
Cavalieri, "Sinfonia da Representação da Alma e Corpo": peru trufado com purê de castanhas.
Lully, "Fanfarras Reais", de 1686: pernil de porco em marinada de vinho Barolo.
Bizet, "Carmem", ato nº 4, Aragonaise: ostras com limão.
Gluck, "Orfeu e Eurídice, Dança dos Espíritos Beatos": moqueca com namorado.
Vivaldi, "Concerto em Mi Menor para Fagote e Arcos": espaguete alla Norma.
Berlioz, "A Danação de Fausto": buchada de bode.
Mozart, "Divertimento K 247 em Sol Maior": doces de marzipã variados.
Mozart, "Adágio para Harmônica e Copos K 356": Mont Blanc.

E-mail: mellao@uol.com.br


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