São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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CINEMA
Show do cantor senegalês Baba Maal encerrou a mostra em Burkina Fasso que exibiu quase 300 filmes
Festival esquece a arte e preza a política

LÚCIA NAGIB
enviada especial a Burkina Fasso

A mais recente edição do Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Uagadugu), ocorrida entre 27 de fevereiro e 6 de março, reiterou a tradição que o evento mantém há 30 anos de grande festa internacional, animada por muita música e marcada por um clima de agitação política.
Além dos quase 300 filmes e vídeos exibidos em vários cinemas e salas de Uagadugu, capital de Burkina Fasso, há sempre seminários e debates, nos quais impera o tom de protesto.
Desta vez, a disposição política mostrou-se explosiva já no início. Desde o final de 1998, manifestações e greves se sucedem no país contra o presidente Blaise Compaoré. A revolta cresceu a partir de 13 de dezembro, quando foi assassinado o jornalista Norbert Zongo, que denunciou torturas e mortes cometidas pelo governo.
Assim, a abertura do Fespaco, realizada num estádio de futebol com capacidade para 20 mil pessoas, constituiu um cenário ideal para o confronto. A massa desafiou incessantemente as autoridades instaladas nos camarotes.
O show de Alpha Blondy, da Costa do Marfim, que abriu a cerimônia com canções de protesto, levou os espectadores ao delírio. As vaias tornaram os discursos dos governantes inaudíveis.
Num tal clima, logo se imagina que um cinema estético seja preterido em favor do político. E isso foi um certo retrocesso em relação a edições anteriores do festival.
O excelente filme de abertura, "A Gênese", do malinês Cheick Oumar Cissoko, foi um balde de água fria sobre um auditório que não se entusiasmou com os cenários requintados e a encenação teatral alegórica de guerras entre povos africanos.
Era, evidentemente, um público diferente daquele que em 1995 aplaudiu "Guimba", filme do mesmo Cissoko, que levou o primeiro prêmio, o Garanhão Yennenga.
O vencedor deste ano, "Carteiras de Identidade", do congolês Mwezé Ngangura, coloca africanos e europeus em lados opostos e propõe a solução: a volta do africano europeizado às suas crenças tradicionais e ao vilarejo natal. Ngangura desenvolve o tema com habilidade, humor e firmeza na direção de atores, o que dá ao filme apelo popular e comercial.
No entanto, surge aí um tipo camuflado de racismo, não apenas nesse, mas em vários outros filmes. Como "Silmandé", de Pierre Yaméogo (Burkina Fasso), que acusa de corrupção os libaneses instalados em seu país. Ou "TGV", do senegalês Moussa Touré, que festeja a entrega de um casal francês a terroristas na Guiné.
Visivelmente influenciado pela preferência popular, o júri elegeu como vencedor "Carteiras de Identidade", oferecendo meros prêmios de consolação a obras importantes como "A Vida na Terra", do mauritano Abderrahmane Sissako, filme de imagens extasiantes e um fino humor sobre a paralisia degradante de uma aldeia africana às portas do ano 2000.
A maior injustiça foi cometida contra "Dakan", do guineano Mohamed Camara. Primeiro filme da África negra a tratar abertamente do homossexualismo, "Dakan" foi duramente criticado pela imprensa e pelo público, que protestou durante as projeções contra a "doença homossexual" trazida pelos brancos, inaceitável no contexto africano.
O filme descreve com coragem detalhista a repressão aos homossexuais nas sociedades africanas, baseadas na estrutura familiar de casais heterossexuais prolíficos.
Curiosamente, os filmes que arriscaram alguma autocrítica em relação à África foram os menos apreciados. Submetidos a pressões políticas e econômicas, tanto artista quanto espectador africanos correm o risco de traduzir sua raiva em rejeição ao estrangeiro tentando se apegar a tradições descaracterizadas ou já inexistentes.
A contradição se acentua quando se considera que o cinema africano, ainda incapaz de se auto-sustentar, diante dos parcos recursos locais e das dificuldades de distribuição dos filmes em seu próprio território, continua dependendo dos europeus para a quase totalidade dos financiamentos.
Vários dos filmes apresentados no festival foram financiados pela União Européia, que, entre 1996 e 1998, investiu mais de 4 milhões de euros em 27 obras africanas.
O Fespaco, porém, permanece sendo um local de confraternização de culturas. O show do cantor e compositor senegalês Baba Maal, no encerramento do evento, fez milhares de espectadores do mundo inteiro dançarem juntos, por um momento esquecidos de cores e raças.


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