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CINEMA
Show do cantor senegalês Baba Maal encerrou a mostra em Burkina Fasso que exibiu quase 300 filmes
Festival esquece a arte e preza a política
LÚCIA NAGIB
enviada especial a Burkina Fasso
A mais recente edição do Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Uagadugu),
ocorrida entre 27 de fevereiro e 6
de março, reiterou a tradição que o
evento mantém há 30 anos de
grande festa internacional, animada por muita música e marcada
por um clima de agitação política.
Além dos quase 300 filmes e vídeos exibidos em vários cinemas e
salas de Uagadugu, capital de Burkina Fasso, há sempre seminários
e debates, nos quais impera o tom
de protesto.
Desta vez, a disposição política
mostrou-se explosiva já no início.
Desde o final de 1998, manifestações e greves se sucedem no país
contra o presidente Blaise Compaoré. A revolta cresceu a partir de
13 de dezembro, quando foi assassinado o jornalista Norbert Zongo,
que denunciou torturas e mortes
cometidas pelo governo.
Assim, a abertura do Fespaco,
realizada num estádio de futebol
com capacidade para 20 mil pessoas, constituiu um cenário ideal
para o confronto. A massa desafiou incessantemente as autoridades instaladas nos camarotes.
O show de Alpha Blondy, da Costa do Marfim, que abriu a cerimônia com canções de protesto, levou
os espectadores ao delírio. As vaias
tornaram os discursos dos governantes inaudíveis.
Num tal clima, logo se imagina
que um cinema estético seja preterido em favor do político. E isso foi
um certo retrocesso em relação a
edições anteriores do festival.
O excelente filme de abertura, "A
Gênese", do malinês Cheick Oumar Cissoko, foi um balde de água
fria sobre um auditório que não se
entusiasmou com os cenários requintados e a encenação teatral
alegórica de guerras entre povos
africanos.
Era, evidentemente, um público
diferente daquele que em 1995
aplaudiu "Guimba", filme do mesmo Cissoko, que levou o primeiro
prêmio, o Garanhão Yennenga.
O vencedor deste ano, "Carteiras
de Identidade", do congolês Mwezé Ngangura, coloca africanos e
europeus em lados opostos e propõe a solução: a volta do africano
europeizado às suas crenças tradicionais e ao vilarejo natal. Ngangura desenvolve o tema com habilidade, humor e firmeza na direção
de atores, o que dá ao filme apelo
popular e comercial.
No entanto, surge aí um tipo camuflado de racismo, não apenas
nesse, mas em vários outros filmes. Como "Silmandé", de Pierre
Yaméogo (Burkina Fasso), que
acusa de corrupção os libaneses
instalados em seu país. Ou "TGV",
do senegalês Moussa Touré, que
festeja a entrega de um casal francês a terroristas na Guiné.
Visivelmente influenciado pela
preferência popular, o júri elegeu
como vencedor "Carteiras de
Identidade", oferecendo meros
prêmios de consolação a obras importantes como "A Vida na Terra",
do mauritano Abderrahmane Sissako, filme de imagens extasiantes
e um fino humor sobre a paralisia
degradante de uma aldeia africana
às portas do ano 2000.
A maior injustiça foi cometida
contra "Dakan", do guineano Mohamed Camara. Primeiro filme da
África negra a tratar abertamente
do homossexualismo, "Dakan" foi
duramente criticado pela imprensa e pelo público, que protestou
durante as projeções contra a
"doença homossexual" trazida pelos brancos, inaceitável no contexto africano.
O filme descreve com coragem
detalhista a repressão aos homossexuais nas sociedades africanas,
baseadas na estrutura familiar de
casais heterossexuais prolíficos.
Curiosamente, os filmes que arriscaram alguma autocrítica em
relação à África foram os menos
apreciados. Submetidos a pressões
políticas e econômicas, tanto artista quanto espectador africanos
correm o risco de traduzir sua raiva em rejeição ao estrangeiro tentando se apegar a tradições descaracterizadas ou já inexistentes.
A contradição se acentua quando se considera que o cinema africano, ainda incapaz de se auto-sustentar, diante dos parcos recursos locais e das dificuldades de distribuição dos filmes em seu próprio território, continua dependendo dos europeus para a quase
totalidade dos financiamentos.
Vários dos filmes apresentados
no festival foram financiados pela
União Européia, que, entre 1996 e
1998, investiu mais de 4 milhões de
euros em 27 obras africanas.
O Fespaco, porém, permanece
sendo um local de confraternização de culturas. O show do cantor
e compositor senegalês Baba Maal,
no encerramento do evento, fez
milhares de espectadores do mundo inteiro dançarem juntos, por
um momento esquecidos de cores
e raças.
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