São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 2002

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A poética do esvaecimento


Julio Bressane filma filosofia e loucura de Nietzsche em longa que estréia hoje em SP


MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO

Julio Bressane, 56, fez 36 filmes. O mais recente deles, "Dias de Nietzsche em Turim", estréia hoje em São Paulo. O diretor já perdeu três longas por falta de condições de mantê-los: deteriorados, os negativos se esvaneceram.
No final do mês, chegarão ao Rio técnicos italianos de cinema. Com uma verba de cerca de US$ 30 mil, vêm com a missão de recuperar os outros filmes de Bressane. "Não ganharei um tostão, mas meus filmes serão salvos."
Em novembro, o Festival de Cinema de Turim (o maior da Itália depois do de Veneza) exibirá todos os filmes do cineasta, começando com "Lima Barreto", de 66, e terminando com "Nietzsche".
As jóias da coroa de sua cinematografia são "O Anjo Nasceu" e "Matou a Família e Foi ao Cinema", ambos de 1969. Eles anteciparam em décadas temas e procedimentos narrativos de vários filmes brasileiros.
O banditismo e a violência, o crime e o submundo, a câmera de mão e as tramas que se cruzam, a cidade vista como confronto entre bairros ricos e periféricos, a fotografia granulada e a montagem acelerada. Esses assuntos e maneiras de narrar, hoje corriqueiros, encontram-se todos lá.
E no entanto não há nada mais distante do cinema brasileiro atual do que os filmes de Bressane. Já no seu lançamento foram catalogados como "marginais", depois "udigrudis", "herméticos" e, hoje, "filmes-cabeça".
"Esses rótulos foram uma forma criminosa de evitar que o cinema brasileiro fosse pluralista", diz Bressane. A seu ver, no cinema brasileiro de hoje, o roteiro tem uma dimensão hipertrofiada. "Os filmes costumam ser apenas tramas, sendo que a maioria deles erige os entrechos da televisão como paradigmas", sustenta.
No cinema de Bressane, o roteiro é apenas uma pequena parte. O entrecho de seus filmes é irresumível. Cabe ao espectador remontá-los na sua mente, redescobrindo o começo, o meio e o fim deles para dar-lhes um sentido.
No caso de "Dias de Nietzsche", o diretor se arriscou a fazer cinefilosofia para discutir três temas do pensador alemão: "O esvaecimento do sujeito, o jogo das perspectivas e o impulso artístico, dividido em apolíneo e dionisíaco".
Em duas horas de conversa no seu apartamento no Alto Leblon, no Rio, ele não criticou nenhum colega e se referiu elogiosamente a apenas três: Rogério Sganzerla, Jean-Marie Straub e Jean-Luc Godard. São três diretores de vanguarda dos anos 60 que, como ele, se mantiveram fiéis à concepção de que fazer e ver cinema deve ser uma experiência transformadora.
Bressane não acha que naquela época se fazia um cinema melhor. "Qualquer um que veja hoje os 800 filmes que foram lançados em 1953, digamos, concluirá que só uns três ou quatro são bons de assistir; e a mesma correlação vale para os filmes feitos em 2002."
Como seus últimos filmes foram sobre são Jerônimo e Nietzsche, ele estaria se afastando da realidade nacional, a tônica virulenta de "O Anjo Nasceu" e "Matou a Família"? "Não acho", responde. "Tudo é realidade, desde as palavras de são Jerônimo ao pensamento de Nietzsche."
Bressane pensa que seus filmes poderiam sensibilizar mais gente, "desde que não fossem jogados de qualquer jeito, sem divulgação, em salas pequenas". E ainda completa: "Tenho muitos públicos dentro de mim".
Mesmo achando que seus filmes sejam menos vistos do que poderiam, Julio Bressane não se amargura. Ele cita uma idéia de Walter Benjamin: "Ainda que ninguém veja um filme meu, nem eu, Deus o verá".


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