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CARLOS HEITOR CONY
O cinema encantado de Billy Wilder
Não chega a ser saudosismo. Os mais atualizados de
hoje, os que estão inseridos na
modernidade e na cultura atual,
daqui a alguns anos terão saudades do "Big Brother", do Ratinho,
do funk e até mesmo do padre
Marcelo Rossi. Coisas.
Em matéria de cinema, é natural que lamentemos o desaparecimento dos monstros sagrados,
um deles morto no mês passado.
Sobraram poucos: Bergman, Monicelli, Antonioni, Godard... que
estão vivos, mas desativados. Como Thomas Mann, que viveu
mais do que a sua obra, eles sobreviveram ao período da grande
criação e, se conseguem rodar um
novo filme, é por conta do hábito
e, talvez, da necessidade de assinarem o ponto no cartão da vida.
Sendo assim, o último da série
foi Billy Wilder, monstro realmente sagrado, que pediu o boné
aos 95 anos, mas deixou uma
obra imensa e intensa, cheia de
himalaias que ficarão como pontos altos do cinema no século 20.
Ele superou pouco a pouco a categoria que os críticos lhe destinaram, a de excelente diretor profissional, e invadiu luminosamente
o sombrio território do gênio. O
nazismo, que tanto mal fez à humanidade, pelo menos trouxe um
benefício isolado ao cinema americano, com a leva de artistas que
emigraram e, ao contato com a
fábrica lubrificada de um país industrializado, conseguiram produzir muito e bem.
Nascido na Áustria, com sólida
formação humanista e técnica,
Billy Wilder foi em muitos sentidos o cineasta completo, dominando os diversos gêneros, da comédia ao drama, da denúncia ao
lirismo. Não se destacou logo porque sua obra não gritava, não tinha apelos demagógicos que entusiasmassem os críticos e o público. Era uma produção segura, honesta, perfeita em seus elementos
dramáticos ou cômicos, mas gradualmente fomos percebendo
que, por trás daquela continuidade de títulos, havia um gênio poderoso que escrevia alguns dos
melhores momentos do cinema
mundial.
Quem viu ""O Encouraçado Potemkin", ""Cidadão Kane", ""Tempos Modernos", ""Oito e Meio",
""Ladrões de Bicicleta", ""O Anjo
Exterminador", ""Aurora", ""O
Gabinete do Dr. Caligari", ""Metrópolis", ""Paixão dos Fortes" e
outros poucos, certamente ficou
de joelhos, diante de uma obra
instantaneamente prima.
Com Billy Wilder o processo foi
diferente. Ele fez não uma obra-prima isoladamente, mas um
conjunto que se tornou obra-prima. Antes de mais nada, tinha
um estilo inconfundível, que aparentemente pertencia ao melhor
cinema americano, mas somente
aos poucos, na terceira ou quarta
visão, percebia-se o talhe do grande cinema europeu. Pode até parecer um paradoxo que ""Quanto
Mais Quente Melhor", a melhor
comédia do cinema americano
(assim considerada por todos,
menos por mim), tenha sido feita
por um vienense.
Um drama açucarado, esplendidamente contado, como ""Sabrina", só depois de certo tempo revela os macetes que o transformam de brilhante comédia romântica em filme realmente
maior.
Não vou citar a extensa filmografia de Wilder, mas qualquer
de seus filmes, mesmo os mais comuns, de repente explodem num
ponto luminoso que tem a sua assinatura. Humor? Conhecimento
da natureza humana? Domínio
absoluto da narrativa? Acho que
tudo isso junto e muito mais.
Destacaria dois pontos altos de
sua obra, um merecidamente reconhecido, cuja ascensão na história do cinema já o coloca no
mesmo pódio onde está ""Cidadão
Kane". O outro é uma comédia.
O primeiro é ""Crepúsculo dos
Deuses", que cresce com o tempo,
pois antes de mais nada é uma
obra sobre o tempo. Até certo
ponto, é um ""Cantando na Chuva" às avessas, indo do presente
para o passado, em forma não de
comédia, mas de drama, ou mesmo de tragédia. O cadáver do roteirista medíocre boiando na piscina de Norma Desmond (""eu
queria ter a minha piscina, eu a
consegui, mas de forma diferente)
é o DNA da máquina infernal em
que se transformou o próprio cinema.
O trio Gloria Swanson-Willie
Holden-Eric von Stroheim, naquela mansão sinistra do Sunset
Boulevard, vive um drama que
pode ser o de todos nós, que somos
superados pelo tempo. Ao contrário de Kane, que era único, só ele,
a decadência de Norma é a decadência de todos nós.
O outro filme que destaco em
sua obra é ""Avanti... Amantes à
Italiana", um filme meio esquecido, em que ressurge a mesma dupla Wilder e I.A.L. Diamond no
roteiro, com aquelas tiradas que
somente eles podiam inventar.
Exemplo: o gerente do hotel se
aconselha com o chefão da CIA.
Recebeu dois convites, um para
ser gerente no Sheraton de Damasco, quer saber como andam
as coisas no Oriente Médio. O alto
funcionário americano diz que
Israel está se armando, que a
União Soviética está despejando
armamentos na região, que os
árabes expulsarão os judeus ou os
judeus exterminarão os árabes.
Pede que esqueça a oferta do Sheraton.
O gerente então diz que tem outra oferta, a do Sheraton de Nova
York. O homem da CIA abaixa a
cabeça, olha para os lados e responde baixinho para não ser ouvido por ninguém: ""Vá para Damasco!".
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