São Paulo, sexta-feira, 12 de abril de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O cinema encantado de Billy Wilder

Não chega a ser saudosismo. Os mais atualizados de hoje, os que estão inseridos na modernidade e na cultura atual, daqui a alguns anos terão saudades do "Big Brother", do Ratinho, do funk e até mesmo do padre Marcelo Rossi. Coisas.
Em matéria de cinema, é natural que lamentemos o desaparecimento dos monstros sagrados, um deles morto no mês passado. Sobraram poucos: Bergman, Monicelli, Antonioni, Godard... que estão vivos, mas desativados. Como Thomas Mann, que viveu mais do que a sua obra, eles sobreviveram ao período da grande criação e, se conseguem rodar um novo filme, é por conta do hábito e, talvez, da necessidade de assinarem o ponto no cartão da vida.
Sendo assim, o último da série foi Billy Wilder, monstro realmente sagrado, que pediu o boné aos 95 anos, mas deixou uma obra imensa e intensa, cheia de himalaias que ficarão como pontos altos do cinema no século 20.
Ele superou pouco a pouco a categoria que os críticos lhe destinaram, a de excelente diretor profissional, e invadiu luminosamente o sombrio território do gênio. O nazismo, que tanto mal fez à humanidade, pelo menos trouxe um benefício isolado ao cinema americano, com a leva de artistas que emigraram e, ao contato com a fábrica lubrificada de um país industrializado, conseguiram produzir muito e bem.
Nascido na Áustria, com sólida formação humanista e técnica, Billy Wilder foi em muitos sentidos o cineasta completo, dominando os diversos gêneros, da comédia ao drama, da denúncia ao lirismo. Não se destacou logo porque sua obra não gritava, não tinha apelos demagógicos que entusiasmassem os críticos e o público. Era uma produção segura, honesta, perfeita em seus elementos dramáticos ou cômicos, mas gradualmente fomos percebendo que, por trás daquela continuidade de títulos, havia um gênio poderoso que escrevia alguns dos melhores momentos do cinema mundial.
Quem viu ""O Encouraçado Potemkin", ""Cidadão Kane", ""Tempos Modernos", ""Oito e Meio", ""Ladrões de Bicicleta", ""O Anjo Exterminador", ""Aurora", ""O Gabinete do Dr. Caligari", ""Metrópolis", ""Paixão dos Fortes" e outros poucos, certamente ficou de joelhos, diante de uma obra instantaneamente prima.
Com Billy Wilder o processo foi diferente. Ele fez não uma obra-prima isoladamente, mas um conjunto que se tornou obra-prima. Antes de mais nada, tinha um estilo inconfundível, que aparentemente pertencia ao melhor cinema americano, mas somente aos poucos, na terceira ou quarta visão, percebia-se o talhe do grande cinema europeu. Pode até parecer um paradoxo que ""Quanto Mais Quente Melhor", a melhor comédia do cinema americano (assim considerada por todos, menos por mim), tenha sido feita por um vienense.
Um drama açucarado, esplendidamente contado, como ""Sabrina", só depois de certo tempo revela os macetes que o transformam de brilhante comédia romântica em filme realmente maior.
Não vou citar a extensa filmografia de Wilder, mas qualquer de seus filmes, mesmo os mais comuns, de repente explodem num ponto luminoso que tem a sua assinatura. Humor? Conhecimento da natureza humana? Domínio absoluto da narrativa? Acho que tudo isso junto e muito mais.
Destacaria dois pontos altos de sua obra, um merecidamente reconhecido, cuja ascensão na história do cinema já o coloca no mesmo pódio onde está ""Cidadão Kane". O outro é uma comédia.
O primeiro é ""Crepúsculo dos Deuses", que cresce com o tempo, pois antes de mais nada é uma obra sobre o tempo. Até certo ponto, é um ""Cantando na Chuva" às avessas, indo do presente para o passado, em forma não de comédia, mas de drama, ou mesmo de tragédia. O cadáver do roteirista medíocre boiando na piscina de Norma Desmond (""eu queria ter a minha piscina, eu a consegui, mas de forma diferente) é o DNA da máquina infernal em que se transformou o próprio cinema.
O trio Gloria Swanson-Willie Holden-Eric von Stroheim, naquela mansão sinistra do Sunset Boulevard, vive um drama que pode ser o de todos nós, que somos superados pelo tempo. Ao contrário de Kane, que era único, só ele, a decadência de Norma é a decadência de todos nós.
O outro filme que destaco em sua obra é ""Avanti... Amantes à Italiana", um filme meio esquecido, em que ressurge a mesma dupla Wilder e I.A.L. Diamond no roteiro, com aquelas tiradas que somente eles podiam inventar.
Exemplo: o gerente do hotel se aconselha com o chefão da CIA. Recebeu dois convites, um para ser gerente no Sheraton de Damasco, quer saber como andam as coisas no Oriente Médio. O alto funcionário americano diz que Israel está se armando, que a União Soviética está despejando armamentos na região, que os árabes expulsarão os judeus ou os judeus exterminarão os árabes. Pede que esqueça a oferta do Sheraton.
O gerente então diz que tem outra oferta, a do Sheraton de Nova York. O homem da CIA abaixa a cabeça, olha para os lados e responde baixinho para não ser ouvido por ninguém: ""Vá para Damasco!".


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