São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2004

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NELSON ASCHER

Poetas do Mundo

Romancistas, contistas, dramaturgos e ensaístas têm sorte, uma sorte que todo poeta inveja. Acontece que aquilo que produzem -romances, contos, peças de teatro e ensaios- viaja bem de idioma em idioma e de um país para outro. Sua produção, aliás, consegue não raro fazer efeito no estrangeiro mesmo através de traduções indiretas ou de segunda mão. Os grandes russos do século 19, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev e Tchékhov, não deixaram de fascinar, por exemplo, o público luso-brasileiro ou o hispânico nem quando suas obras eram vertidas para o português ou espanhol a partir de línguas intermediárias. A arquitetura grandiosa de "Os Irmãos Karamázov" ou de "Ana Karênina" se mostrou capaz de sobreviver inclusive aos equívocos de profissionais que dominavam mal não o russo, mas o inglês ou o francês.
Os poetas, por seu turno, dependem infinitamente mais da competência e do empenho de seus intérpretes para serem minimamente conhecidos e apreciados fora dos limites de sua língua natal. Esta é uma das razões pelas quais foram sobretudo os versos escritos em alguns dos grandes idiomas, idiomas que poderiam ser chamados de imperiais (inglês, francês, espanhol, alemão, italiano e russo), aqueles que chegaram com algum sucesso às línguas menos influentes. Baudelaire e T.S. Eliot, García Lorca e Georg Trakl, Montale e Maiakóvski foram lidos e admirados no Brasil ou na Hungria. Já o mesmo não vale, entre os leitores do Primeiro Mundo, para Drummond e Bandeira, para Attila József ou Sándor Weöres.
Não que estes não tivessem às vezes sido publicados na Europa Ocidental ou nos EUA, mas uma antologia francesa aqui, uma monografia americana estampada por alguma editora universitária ali não bastam para fazer uma obra poética criar, por assim dizer, raízes em solo alheio. A rigor, em todo o século 20 houve apenas dois poetas que, embora escrevessem em idiomas menos freqüentados, alcançaram renome universal e se tornaram referência obrigatória em quase toda parte: Fernando Pessoa e o neo-grego Konstantinos Kaváfis.
Em ambos os casos, a fama internacional veio somente após a morte dos autores e resultou da dedicação de vários tradutores e entusiastas. Para falarmos apenas de Kaváfis, antes que fosse reconhecido por um público maior, ele já havia seduzido personalidades como E.M. Forster ("Uma Passagem para a Índia"), Law rence Durrell ("O Quarteto de Alexandria"), W.H. Auden e Marguerite Yourcenar, todos eles empenhando-se em promovê-lo.
Nem tudo, porém, é motivo de pessimismo. Se é líquido e seguro que até uma obra como a de João Cabral dificilmente atrairá uma legião de leitores anglófonos antes que uma sucessão de ingleses, americanos ou australianos o "redescubra" e resolva apresentar sua grandeza num inglês condigno, o pernambucano e tantos outros brasileiros ou tchecos, catalães ou holandeses têm lá suas chances de pelo menos chamarem a atenção de um público restrito quer de especialistas, quer, em condições ideais, de escritores.
Um dos meios pelos quais essas metas mais modestas têm se realizado são algumas coleções de poesia estrangeira que, devido aos talentos e esforços de seus organizadores, tornaram-se célebres. O melhor exemplo que conheço é o da série batizada de "Penguin Modern European Poets", cujo editor, o inglês A. Alvarez, apresentou a seus conterrâneos, entre os anos 70 e 80, além de nomes como o do próprio Pessoa, poetas russos e alemães, mas também húngaros, poloneses, tchecos, finlandeses e israelenses. Malgrado não ter sido exatamente um sucesso comercial, reconhece-se que a série de Alvarez contribuiu, com as novas informações que trazia, para subverter as convenções paroquiais da poesia britânica de então.
Uma iniciativa semelhante está em curso no Brasil e nada impede que ela exerça uma influência benéfica sobre as letras nacionais. Trata-se da coleção "Poetas do Mundo", publicada pela Universidade Nacional de Brasília e dirigida por Henryk Siewierski.
O diretor da coleção, professor de literatura comparada nascido na Polônia, tem sido o principal divulgador no Brasil dos autores de sua terra. Além de verter os contos de Bruno Schulz (um narrador brilhante que foi assassinado pelos nazistas) e poetas do pós-guerra, ele escreveu uma ótima e concisa história da literatura polonesa. É com uma antologia de Czeslaw Milosz (nascido em 1911), prêmio Nobel de Literatura de 1980, traduzida por ele em colaboração com Marcelo Paiva de Souza, que a série se inaugura. O nonagenário polonês talvez seja atualmente o maior poeta vivo e esta antologia, "Não Mais", bem selecionada e traduzida do original, é a primeira a reunir uma quantidade considerável de seus poemas em português.
Três outros volumes da coleção já foram publicados: "Bosque da Maldição", do sérvio Miodrag Pávlovitch, traduzido por Aleksandar Jovanovic; "A Mimosa", do francês Francis Ponge, em tradução de Adalberto Müller; e "As Cicatrizes do Atlas", do marroquino de expressão francesa Tahar Ben Jelloun, vertido por Cláudia Falluh Balduíno Ferreira.
Se bem que cada qual desses volumes mereça, obviamente, uma resenha individual, isso ficará para outra oportunidade. Convém, no entanto, ressaltar que esses autores, mais do que importantes, são instigantes e, graças à competência de seus respectivos tradutores, contribuirão seguramente para ampliar os horizontes, que andam meio fechados, seja do leitor brasileiro de poesia, seja de muitos de nossos poetas atuais.


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