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Público que não freqüenta salas de concertos estréia em séries com ingressos a preços populares
Erudito popular
MARCOS DÁVILA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Casacos de peles, carros importados e gente com o nariz em pé.
O contexto imaginado pela desempregada Percinia Silva Neto,
30, quase a fez desistir de assistir a
seu primeiro concerto de música
erudita, na portentosa Sala São
Paulo, no centro da cidade. "Estava com receio. Passei uma vez na
frente do [teatro] Municipal e só
tinha bacana", conta Percinia, que
mora no Itaim Paulista, extremo
leste da cidade, e levou quase uma
hora no trem para chegar à sala de
espetáculos, no último dia 28.
Como muitos paulistanos de
baixa renda, ela fez seu "début"
como espectadora na Sala São
Paulo por meio do projeto Concertos Matinais, que neste ano
passou a vender ingressos a R$ 1
nas unidades do Poupatempo (na
bilheteria, a entrada custa R$ 2). A
série de concertos, que acontecem
aos domingos, às 11h, tem como
objetivo a formação de público,
dando acesso a uma população
que não tem condições de pagar
os outros concertos.
"Parecia aquele desenho do
Walt Disney, mas muito mais bonito", afirmou a desempregada,
depois da apresentação da Orquestra de Câmara da USP, sob
regência do maestro Gil Jardim,
que também assina a direção artística dos Concertos Matinais. O
desenho animado citado por Cecília é o popular "Fantasia"
(1940), em que Mickey Mouse
aparece como um aprendiz de feiticeiro em um dos episódios, todos sem fala, com "hits" de Bach,
Tchaikovsky e Beethoven.
Naquela manhã de domingo,
aliás, Beethoven estava no programa da orquestra. E o maestro Jardim aproveitava as pausas para
fazer breves comentários sobre os
compositores, suas obras e os instrumentos musicais.
"Não entendi muito bem o que
ele falou. Mas não interessa quem
fez ou deixou de fazer. A música
entra na gente. O importante é a
sensação", diz a desempregada. E
o que achou da Sala São Paulo?
Ela define em uma só palavra:
"Fashion".
A algumas fileiras dali, a aposentada Elza da Silva Rosa, 65,
também estava encantada com a
sala, na qual pisava pela primeira
vez: "É linda, um espetáculo". Elza ficou sabendo do concerto por
meio do seu neto, Jonas, 8, que viu
um anúncio no Poupatempo.
Embora deslumbrada com o lugar, ela apresentou duas críticas:
"Não tem nenhum folhetinho dizendo o que vai ser tocado" e "não
tem sax na orquestra". A segunda
reclamação foi de ordem sentimental, já que seu marido, que já
morreu, foi saxofonista da banda
da Polícia Militar.
Samba
"Hoje isso aqui está um samba",
comenta uma senhora com outra,
que concorda com a cabeça, no
meio de uma grande fila para ver
a apresentação do músico Carlinhos Antunes, no Concertos Matinais do último dia 4.
O comentário traduzia a agitação da sala que, naquele dia, recebia um grupo de 180 moradores
da periferia de São Paulo. A excursão fazia parte do projeto Cenafoco 2004, que forma líderes
comunitários.
"Gosto mais de samba e rap. Orquestra é mais para classe média e
alta, né?", afirma o estudante Vladimir Silva Costa, 16, que mora
em São Mateus. "Gastou muito
pra fazer isso, né? Mas o dinheiro
que gastou valeu a pena. É pra todo mundo, né?", diz o jovem sobre a Sala São Paulo.
Seu amigo, acompanhando a
entrevista, coloca o pé sobre uma
mureta da sala e, notando a gafe,
rapidamente tira-o dali, exclamando repleto de auto-ironia: "É
periferia mesmo!".
Um outro grupo de 22 crianças
do projeto Guri, do governo estadual, que dá aulas de música em
regiões pobres de Atibaia, também fazia sua estréia na sala.
"Aqui é muito organizado. Acho
interessante porque ajuda muito
na cultura do Brasil", afirma o estudante de violino Wellington
Gonçalves, 10, morador de Caetetuba. "É o bairro mais pobre de
Atibaia", faz questão de frisar.
Além do Concertos Matinais, há
outros projetos na cidade que visam a formação de público. Um
deles é o Theatro Municipal Visita, que leva concertos gratuitos a
teatros de bairro. Na sexta-feira,
dia 2, mais de 1.500 crianças assistiram ao espetáculo musical "Pedro e o Lobo", de Prokofiev, com
regência de Daniel Misiuk. O concerto marcou o início de uma turnê que vai percorrer todas as unidades do CEU até 25 de julho.
"A peça tem um caráter didático
ao apresentar cada instrumento
às crianças. E 99% delas nunca tinham ido ao Municipal", afirma a
professora Regina Celi de Oliveira, 38, que acompanhou um grupo com 300 alunos de uma escola
municipal na Vila Prudente.
"As pessoas da periferia não vão
muito ao Municipal porque é
muito longe e pouco divulgado.
Às vezes, a delegacia de ensino
dispõe de ônibus, mas nem sempre as datas coincidem", diz a
professora.
Há ainda quem passe na frente
do Municipal e faça o sinal da
cruz.
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