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BERNARDO CARVALHO
A impotência das palavras
Quando tinha 20 anos, Lars
Norén, um dos expoentes da
dramaturgia sueca contemporânea, nascido em 1944, foi internado num hospital psiquiátrico e
tratado como esquizofrênico. Tinha publicado dois livros de poemas. Passou pelas terapias disponíveis, que não descartavam os
choques elétricos, e mesmo assim
não parou de escrever.
"Ensaios" ("Repetitoner",
2004), de Michal Leszczylowski,
exibido no festival de documentários É Tudo Verdade, registra o
trabalho que Norén desenvolveu
numa penitenciária em 1998. O
objetivo era criar um texto que
tratasse do encontro entre o dramaturgo e três prisioneiros. Depois de coletar os depoimentos,
Norén pôs os três para ensaiar, repetir e ouvir as próprias palavras.
Fez com que representassem, como atores, o texto que eles próprios disseram, como presos.
O processo (que resultou na peça "7:3", encenada em 1999) é documentado pelo filme e faz lembrar "Close Up", de Abbas Kiarostami, em que o cineasta iraniano propunha um desafio a um
grupo de pessoas: representar, como atores, as circunstâncias que,
na realidade, os levaram a se enfrentar numa batalha judicial.
Na peça proposta por Norén aos
presos, o texto reencena a relação
do autor (interpretado por um
ator) com os três prisioneiros e os
faz interpretar os próprios papéis.
Há uma particularidade no interesse do dramaturgo por esses
presos: diante deles, a palavra parece já não ter nenhum efeito.
Condenados ainda jovens, eles
comungam a mesma ideologia
neonazista e estão imunes a todo
argumento de bom senso. Em
princípio, poderiam passar por
sujeitos simples, e até simpáticos,
a quem não foi dada uma chance
na vida, se não fosse por um ou
outro indício mais obscuro de
suas personalidades, como a tatuagem nas costas de um deles:
"The Hate Still Shades me" (o
ódio ainda me assombra).
Os ensaios começam amistosos
mas, conforme avançam, a dificuldade que dois dos presos, em
particular, têm de distinguir entre
representação e realidade os empurra para um ponto de conflito
que é o fundamento da peça.
Quando um deles fica indignado
com o que diz o personagem do
dramaturgo, Norén intercede como se falasse a um ator profissional: "Você só deve se preocupar
com as suas falas. Não discuta as
falas dos outros. Nem zombe delas". Está propondo um exercício
de democracia. Mas a impossibilidade desse exercício vai se revelando aos poucos.
"7: 3", o título da peça, é a classificação dada aos presos propensos à fuga e à recidiva. Depois de
22 apresentações da peça na prisão, dois dos protagonistas conseguem fugir, assaltam um banco e
um deles mata dois policiais. Tudo pela causa neonazista.
Entre as cartas confiscadas de
um deles, há uma que diz: "Não
há nada como uma guerra real.
Quando você começa, não dá
mais para parar". A guerra é o
tempo ideal para o neonazista,
pois é o tempo da exceção, quando todo o resto se iguala a ele.
Questionado pelo dramaturgo
sobre a violência dos seus atos, o
preso responde: "Você tem que
despersonalizar as coisas para seguir vivendo, se não se afunda em
conflitos". A palavra "conflito"
podia ser substituída por "culpa".
O Nacional Socialismo é uma
realidade paralela que dá sentido
à vida daquele sujeito, e elimina a
culpa, como uma guerra imaginária ou um mundo de aventura
e fantasia. Matar alguém passa a
ser tão simples quanto derrubar
uma peça num tabuleiro, uma
vez que a realidade foi despersonalizada.
A fantasia de um "povo homogêneo", defendendo uma suposta
integridade da nação, plataforma
do Nacional Socialismo, serve como uma miragem de comunhão e
integração, além de uma forma
de extravasar o ódio, para quem
está à margem. A necessidade de
uma identidade nacional é imperativa para os que se sentem excluídos, uma compensação imaginária de que os privilegiados
não precisam, embora muitas vezes também se sirvam dela por
oportunismo.
A certa altura, Norén se vê impelido a discutir com os presos sobre a ideologia nazista e a democracia. Fica esgotado. É como falar com um muro. A discussão só
é possível quando os interlocutores compartilham um mínimo denominador comum. A ausência
desse denominador torna a lógica
e o bom senso infrutíferos contra
qualquer argumento, por mais
ilógico e absurdo.
É o que demora a entender o
menino coreano de uma outra
peça do dramaturgo, "Frio"
("Kyla", 2003). No último dia de
aula antes das férias de verão, o
menino, que foi adotado por uma
família sueca, é interpelado por
três neonazistas, colegas de escola, quando volta para casa. O espectador já supõe o que vai acontecer, mas a loucura do menino
coreano é acreditar nas palavras.
Ele defende suas idéias, em vez de
fugir. Debate em nome do bom
senso, como se estivesse numa tribuna, sem se dar conta da proximidade do perigo, crente no poder das palavras -ou ofuscado
por elas. O menino coreano é como a alegoria das sociedades democráticas desenvolvidas diante
do avanço da extrema direita.
Continua conversando com seus
interlocutores como se nada estivesse acontecendo. Mesmo espancado, ainda tenta argumentar.
É surpreendente a determinação de um dramaturgo como Norén, perplexo diante da impotência das palavras. E que, apesar de
tudo, continua escrevendo e acreditando nelas.
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