São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 2005

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BERNARDO CARVALHO

A impotência das palavras

Quando tinha 20 anos, Lars Norén, um dos expoentes da dramaturgia sueca contemporânea, nascido em 1944, foi internado num hospital psiquiátrico e tratado como esquizofrênico. Tinha publicado dois livros de poemas. Passou pelas terapias disponíveis, que não descartavam os choques elétricos, e mesmo assim não parou de escrever.
"Ensaios" ("Repetitoner", 2004), de Michal Leszczylowski, exibido no festival de documentários É Tudo Verdade, registra o trabalho que Norén desenvolveu numa penitenciária em 1998. O objetivo era criar um texto que tratasse do encontro entre o dramaturgo e três prisioneiros. Depois de coletar os depoimentos, Norén pôs os três para ensaiar, repetir e ouvir as próprias palavras. Fez com que representassem, como atores, o texto que eles próprios disseram, como presos.
O processo (que resultou na peça "7:3", encenada em 1999) é documentado pelo filme e faz lembrar "Close Up", de Abbas Kiarostami, em que o cineasta iraniano propunha um desafio a um grupo de pessoas: representar, como atores, as circunstâncias que, na realidade, os levaram a se enfrentar numa batalha judicial. Na peça proposta por Norén aos presos, o texto reencena a relação do autor (interpretado por um ator) com os três prisioneiros e os faz interpretar os próprios papéis.
Há uma particularidade no interesse do dramaturgo por esses presos: diante deles, a palavra parece já não ter nenhum efeito. Condenados ainda jovens, eles comungam a mesma ideologia neonazista e estão imunes a todo argumento de bom senso. Em princípio, poderiam passar por sujeitos simples, e até simpáticos, a quem não foi dada uma chance na vida, se não fosse por um ou outro indício mais obscuro de suas personalidades, como a tatuagem nas costas de um deles: "The Hate Still Shades me" (o ódio ainda me assombra).
Os ensaios começam amistosos mas, conforme avançam, a dificuldade que dois dos presos, em particular, têm de distinguir entre representação e realidade os empurra para um ponto de conflito que é o fundamento da peça. Quando um deles fica indignado com o que diz o personagem do dramaturgo, Norén intercede como se falasse a um ator profissional: "Você só deve se preocupar com as suas falas. Não discuta as falas dos outros. Nem zombe delas". Está propondo um exercício de democracia. Mas a impossibilidade desse exercício vai se revelando aos poucos.
"7: 3", o título da peça, é a classificação dada aos presos propensos à fuga e à recidiva. Depois de 22 apresentações da peça na prisão, dois dos protagonistas conseguem fugir, assaltam um banco e um deles mata dois policiais. Tudo pela causa neonazista.
Entre as cartas confiscadas de um deles, há uma que diz: "Não há nada como uma guerra real. Quando você começa, não dá mais para parar". A guerra é o tempo ideal para o neonazista, pois é o tempo da exceção, quando todo o resto se iguala a ele.
Questionado pelo dramaturgo sobre a violência dos seus atos, o preso responde: "Você tem que despersonalizar as coisas para seguir vivendo, se não se afunda em conflitos". A palavra "conflito" podia ser substituída por "culpa". O Nacional Socialismo é uma realidade paralela que dá sentido à vida daquele sujeito, e elimina a culpa, como uma guerra imaginária ou um mundo de aventura e fantasia. Matar alguém passa a ser tão simples quanto derrubar uma peça num tabuleiro, uma vez que a realidade foi despersonalizada.
A fantasia de um "povo homogêneo", defendendo uma suposta integridade da nação, plataforma do Nacional Socialismo, serve como uma miragem de comunhão e integração, além de uma forma de extravasar o ódio, para quem está à margem. A necessidade de uma identidade nacional é imperativa para os que se sentem excluídos, uma compensação imaginária de que os privilegiados não precisam, embora muitas vezes também se sirvam dela por oportunismo.
A certa altura, Norén se vê impelido a discutir com os presos sobre a ideologia nazista e a democracia. Fica esgotado. É como falar com um muro. A discussão só é possível quando os interlocutores compartilham um mínimo denominador comum. A ausência desse denominador torna a lógica e o bom senso infrutíferos contra qualquer argumento, por mais ilógico e absurdo.
É o que demora a entender o menino coreano de uma outra peça do dramaturgo, "Frio" ("Kyla", 2003). No último dia de aula antes das férias de verão, o menino, que foi adotado por uma família sueca, é interpelado por três neonazistas, colegas de escola, quando volta para casa. O espectador já supõe o que vai acontecer, mas a loucura do menino coreano é acreditar nas palavras. Ele defende suas idéias, em vez de fugir. Debate em nome do bom senso, como se estivesse numa tribuna, sem se dar conta da proximidade do perigo, crente no poder das palavras -ou ofuscado por elas. O menino coreano é como a alegoria das sociedades democráticas desenvolvidas diante do avanço da extrema direita. Continua conversando com seus interlocutores como se nada estivesse acontecendo. Mesmo espancado, ainda tenta argumentar.
É surpreendente a determinação de um dramaturgo como Norén, perplexo diante da impotência das palavras. E que, apesar de tudo, continua escrevendo e acreditando nelas.


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