São Paulo, Segunda-feira, 12 de Abril de 1999
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LITERATURA

João Ubaldo Ribeiro, o inventor de palavras e sons

ANTONIO OLINTO
especial para a Folha

Como definir o estilo de João Ubaldo Ribeiro? Talvez lembrando Robert Graves, o poeta, ensaísta e romancista inglês que ligava estilo e ritmos literários aos movimentos da natureza.
Dir-se-ia, assim, que João Ubaldo escreve na cadência de um rio que avança ou do vento nas folhas. Para isso, inventa palavras e sons. Joyce ou Rosa? Não, diferente de ambos. Até na concepção inicial de seus livros, começa antes de começar. Ou depois. Pegando a história pelo meio, é como se ela já tivesse existido antes, mas não estivesse ali, no livro ainda não posto de pé.
Sargento Getúlio leva o preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros -leva-o e leva-se. O levar é diferente ou será, ou seria, que o preso é que o levasse? Quem leva quem? No meio, o terrão, o desertão. Sergipe não é um sertão só? Pois quem pariu o homem? Foi a terra, a terra parideira.
Como entrou João Ubaldo nessa caminhada? Entrou e não saiu, ainda está nela, o livro não terminou, não terminará jamais, daí salta para dar um viva ao povo brasileiro, com o alferes Bradão Galvão falando às gaivotas.
Da antropofagia inicial à chegada dos orixás das terras de Oió e de Oxogbô, do gênio construtor e do senso de aventura do português às lutas em Canudos, com lugares epicamente chamados de Cocorobó e Uauá, forma-se um povo de jeito novo, e lá está o romancista para pegá-lo, amoldá-lo, criá-lo e dar-lhe a consistência das coisas permanentes.
Mas como falar deste país sem o lanho do humor? Em tudo insere João Ubaldo a visão do humorista, que vê o que não aparece, identifica a nudez das gentes, entende os pensamentos ocultos. Em "Vencecavalo e o Outro Povo", o humor atinge o auge, como também nas crônicas -haverá coisa mais engraçada e cômica, mais desavergonhadamente hilariante, do que uma aparentemente séria conversa sobre política e planos de governo por um grupo de pessoas ou personagens ligadas às supostas missões de gerir a coisa pública?
A simples formulação joão-ubaldiana dessa pergunta revela a massa de humor que sua obra inventa, destila e acumula. Para dar um tom forte, alto -e baixo também- ao seu humor, tinha João Ubaldo de dominar não só a linguagem, a língua, o ritmo das palavras, mas também os sons sem significado aparente que, na linha da comicidade, muito significam.
No fundo, chega João Ubaldo à criação de um país e de um povo, país dele e povo dele, mas também país que existe fora das palavras e povo que ri fora e dentro das palavras. As duas realidades -a real, que envolve o caminho de cada brasileiro e a realidade não menos real, mas com outras vestiduras- mesclam-se na obra de João Ubaldo de tal maneira que ele acaba promovendo uma invenção do Brasil e uma invenção de cada um de nós. Nisso -e no modo como pega no país para o mostrar pelo avesso, e nas gentes desse país, para mostrá-las de cara lavada- provoca uma reação de espanto e incredulidade.
Falei no domínio das palavras que o distingue. O setor de análises literárias desta parte do mundo parece não ter ainda avaliado, em toda a extensão e em toda a sua profunda significância, a revolução que passamos a ter entre nós desde que o sargento Getúlio saiu com seu prisioneiro de Paulo Afonso ou, antes disso, desde que setembro passou a não ter sentido, no seu romance de juventude que foi prefaciado por Glauber Rocha.
Já nele se destacava o modo, direto e preciso, de erguer um personagem e criar um mundo. Ali começava também a revolução que sargento Getúlio levaria a cabo no seu périplo, e ali surgia o escritor brasileiro por excelência deste final de século. Inventando um país, João Ubaldo inventou-se a si mesmo e foi eleito pelos seus leitores o porta-voz deste país.


Antonio Olinto, 79, escritor, crítico literário e diplomata, ocupa a cadeira número 8 da Academia Brasileira de Letras


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