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LITERATURA
João Ubaldo Ribeiro, o inventor de palavras e sons
ANTONIO OLINTO
especial para a Folha
Como definir o estilo de João
Ubaldo Ribeiro? Talvez lembrando Robert Graves, o poeta, ensaísta
e romancista inglês que ligava estilo e ritmos literários aos movimentos da natureza.
Dir-se-ia, assim, que João Ubaldo escreve na cadência de um rio
que avança ou do vento nas folhas.
Para isso, inventa palavras e sons.
Joyce ou Rosa? Não, diferente de
ambos. Até na concepção inicial de
seus livros, começa antes de começar. Ou depois. Pegando a história
pelo meio, é como se ela já tivesse
existido antes, mas não estivesse
ali, no livro ainda não posto de pé.
Sargento Getúlio leva o preso de
Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros -leva-o e leva-se. O levar é diferente ou será, ou seria, que o preso é que o levasse? Quem leva
quem? No meio, o terrão, o desertão. Sergipe não é um sertão só?
Pois quem pariu o homem? Foi a
terra, a terra parideira.
Como entrou João Ubaldo nessa
caminhada? Entrou e não saiu,
ainda está nela, o livro não terminou, não terminará jamais, daí salta para dar um viva ao povo brasileiro, com o alferes Bradão Galvão
falando às gaivotas.
Da antropofagia inicial à chegada dos orixás das terras de Oió e de
Oxogbô, do gênio construtor e do
senso de aventura do português às
lutas em Canudos, com lugares
epicamente chamados de Cocorobó e Uauá, forma-se um povo de
jeito novo, e lá está o romancista
para pegá-lo, amoldá-lo, criá-lo e
dar-lhe a consistência das coisas
permanentes.
Mas como falar deste país sem o
lanho do humor? Em tudo insere
João Ubaldo a visão do humorista,
que vê o que não aparece, identifica a nudez das gentes, entende os
pensamentos ocultos. Em "Vencecavalo e o Outro Povo", o humor
atinge o auge, como também nas
crônicas -haverá coisa mais engraçada e cômica, mais desavergonhadamente hilariante, do que
uma aparentemente séria conversa sobre política e planos de governo por um grupo de pessoas ou
personagens ligadas às supostas
missões de gerir a coisa pública?
A simples formulação joão-ubaldiana dessa pergunta revela a massa de humor que sua obra inventa,
destila e acumula. Para dar um
tom forte, alto -e baixo também- ao seu humor, tinha João
Ubaldo de dominar não só a linguagem, a língua, o ritmo das palavras, mas também os sons sem significado aparente que, na linha da
comicidade, muito significam.
No fundo, chega João Ubaldo à
criação de um país e de um povo,
país dele e povo dele, mas também
país que existe fora das palavras e
povo que ri fora e dentro das palavras. As duas realidades -a real,
que envolve o caminho de cada
brasileiro e a realidade não menos
real, mas com outras vestiduras-
mesclam-se na obra de João Ubaldo de tal maneira que ele acaba
promovendo uma invenção do
Brasil e uma invenção de cada um
de nós. Nisso -e no modo como
pega no país para o mostrar pelo
avesso, e nas gentes desse país, para mostrá-las de cara lavada-
provoca uma reação de espanto e
incredulidade.
Falei no domínio das palavras
que o distingue. O setor de análises
literárias desta parte do mundo
parece não ter ainda avaliado, em
toda a extensão e em toda a sua
profunda significância, a revolução que passamos a ter entre nós
desde que o sargento Getúlio saiu
com seu prisioneiro de Paulo
Afonso ou, antes disso, desde que
setembro passou a não ter sentido,
no seu romance de juventude que
foi prefaciado por Glauber Rocha.
Já nele se destacava o modo, direto e preciso, de erguer um personagem e criar um mundo. Ali começava também a revolução que
sargento Getúlio levaria a cabo no
seu périplo, e ali surgia o escritor
brasileiro por excelência deste final de século. Inventando um país,
João Ubaldo inventou-se a si mesmo e foi eleito pelos seus leitores o
porta-voz deste país.
Antonio Olinto, 79, escritor, crítico literário e
diplomata, ocupa a cadeira número 8 da Academia Brasileira de Letras
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