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CINEMA/ESTRÉIA
Cinebiografia de poeta catarinense do século 19 entra em cartaz hoje no Cinesesc, em São Paulo
Back persegue simbolismo de Cruz e Sousa
IVAN TEIXEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1871, aos 10 anos, João da
Cruz e Sousa -cuja cinebiografia
"Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", de Sylvio Back, estréia hoje
nos cinemas- matriculou-se no
Ateneu Provincial Catarinense, o
melhor colégio de sua cidade natal, Nossa Senhora do Desterro,
atual Florianópolis.
Pouco depois, um dos professores, o sábio alemão Fritz Müller,
amigo de Darwin, registrou por
escrito seu espanto diante da capacidade intelectual daquele aluno negro, que demonstrava excelente desempenho em todas as
disciplinas, como grego, latim, inglês, francês, matemática e ciências naturais.
A que se deve o insólito fato de
um filho de escravos destacar-se
em escola de escravocratas brancos, em plena escravidão? A dois
fatores: primeiro, porque o menino João era uma criatura extraordinária; segundo, porque fora
criado por família rica, com estímulo e condições de desenvolver
as aptidões que qualquer criança
de qualquer raça pode apresentar.
Em 1893, já no Rio, e com apenas 32 anos, o moço João publicaria um dos mais impressionantes
livros da poesia brasileira, "Broquéis". Ainda no mesmo ano publicaria "Missal", conjunto de
poemas em prosa. "Broquéis"
possui enorme importância história e estética: é responsável pela
introdução do simbolismo no
Brasil, corrente poética que conduziria nossa sensibilidade às reformas do modernismo.
Resultado de minuciosa pesquisa do verso e de suas possibilidades expressivas, o livro de Cruz e
Sousa ultimou, na poesia brasileira, a criação do "verso harmônico" (justaposição cumulativa de
frases nominais), de que Mário de
Andrade se apropriaria para fortalecer o manancial modernista
de seu "Paulicéia Desvairada".
Mais do que isso, influenciou
diretamente a formação literária
de Augusto dos Anjos, um dos
poetas mais completos e indispensáveis de nossa poesia.
Nenhum poeta antes de Cruz e
Sousa explorou o poder sugestivo
dos vocábulos como ele em "Broquéis", combinando-os e recombinando-os em associações sonoras, cromáticas, olfativas, tácteis e
gustativas. Isso levou Sílvio Romero a considerá-lo, um tanto euforicamente, "o rei da poesia sugestiva". Como se vê, antes de Pelé, já possuíamos um rei negro.
No Brasil, um país carente de
grandes exemplos, o caso de Cruz
e Sousa deve cada vez mais ser
alardeado, não só para que sirva
de estímulo à comunidade negra,
mas sobretudo para que a enorme
comunidade de brancos ignorantes abandone definitivamente
seus odiosos clichês acerca dos
negros em nosso meio.
Se há relativamente poucos negros puros com expressão artística de primeiríssimo nível, a quantidade de mestiços diretos é incalculável, a começar por três dos
maiores escritores de todos os
tempos nascidos no Brasil: Machado de Assis, Lima Barreto e
Mário de Andrade.
Mas Cruz e Sousa vale por si só,
não precisa de associações enobrecedoras. Mesmo essa história
de evocar sua condição de negro
não passa de artifício para chamar
a atenção sobre sua tão pouco conhecida poesia.
Pouco antes de sua partida para
o interior de Minas Gerais -para
onde foi em busca de saúde e de
onde não voltaria senão depois de
morto em 1898, num vagão de gado-, Cruz e Sousa entregara a
seu amigo Nestor Vitor diversos
manuscritos, dos quais resultaram seus três últimos livros:
"Evocações" (1898), "Faróis"
(1900) e "Últimos Sonetos"
(1905), todos editados por Vitor,
que mais tarde se destacaria como
crítico da poesia simbolista.
Um dos aspectos relevantes para a leitura de "Evocações", além
de se impor como uma das primeiras realizações sólidas do poema em prosa no Brasil, consiste
nas fortes representações dos espaços escuros do sofrimento e da
inconsciência dos delírios e dos
desejos tal como se observa em
"Tenebrosa", em cujo final se lê
singularíssima figuração erótica.
Em "Faróis", Cruz e Sousa consolida o tema do poeta maldito,
fundindo harmoniosamente uma
tópica de natureza universal com
traços da própria condição. Em
"Últimos Sonetos", seu livro mais
apreciado, o poeta, tendo acumulado enorme domínio técnico, dedica-se ao texto sapiencial ou reflexivo, com nítida preferência
pela frase lapidar e concisa.
Ivan Teixeira, autor de "Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica" (Edusp), é
professor de literatura na ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo)
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