São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 2000


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CINEMA/ESTRÉIA
Cinebiografia de poeta catarinense do século 19 entra em cartaz hoje no Cinesesc, em São Paulo
Back persegue simbolismo de Cruz e Sousa

IVAN TEIXEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1871, aos 10 anos, João da Cruz e Sousa -cuja cinebiografia "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", de Sylvio Back, estréia hoje nos cinemas- matriculou-se no Ateneu Provincial Catarinense, o melhor colégio de sua cidade natal, Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis.
Pouco depois, um dos professores, o sábio alemão Fritz Müller, amigo de Darwin, registrou por escrito seu espanto diante da capacidade intelectual daquele aluno negro, que demonstrava excelente desempenho em todas as disciplinas, como grego, latim, inglês, francês, matemática e ciências naturais.
A que se deve o insólito fato de um filho de escravos destacar-se em escola de escravocratas brancos, em plena escravidão? A dois fatores: primeiro, porque o menino João era uma criatura extraordinária; segundo, porque fora criado por família rica, com estímulo e condições de desenvolver as aptidões que qualquer criança de qualquer raça pode apresentar.
Em 1893, já no Rio, e com apenas 32 anos, o moço João publicaria um dos mais impressionantes livros da poesia brasileira, "Broquéis". Ainda no mesmo ano publicaria "Missal", conjunto de poemas em prosa. "Broquéis" possui enorme importância história e estética: é responsável pela introdução do simbolismo no Brasil, corrente poética que conduziria nossa sensibilidade às reformas do modernismo.
Resultado de minuciosa pesquisa do verso e de suas possibilidades expressivas, o livro de Cruz e Sousa ultimou, na poesia brasileira, a criação do "verso harmônico" (justaposição cumulativa de frases nominais), de que Mário de Andrade se apropriaria para fortalecer o manancial modernista de seu "Paulicéia Desvairada".
Mais do que isso, influenciou diretamente a formação literária de Augusto dos Anjos, um dos poetas mais completos e indispensáveis de nossa poesia.
Nenhum poeta antes de Cruz e Sousa explorou o poder sugestivo dos vocábulos como ele em "Broquéis", combinando-os e recombinando-os em associações sonoras, cromáticas, olfativas, tácteis e gustativas. Isso levou Sílvio Romero a considerá-lo, um tanto euforicamente, "o rei da poesia sugestiva". Como se vê, antes de Pelé, já possuíamos um rei negro.
No Brasil, um país carente de grandes exemplos, o caso de Cruz e Sousa deve cada vez mais ser alardeado, não só para que sirva de estímulo à comunidade negra, mas sobretudo para que a enorme comunidade de brancos ignorantes abandone definitivamente seus odiosos clichês acerca dos negros em nosso meio.
Se há relativamente poucos negros puros com expressão artística de primeiríssimo nível, a quantidade de mestiços diretos é incalculável, a começar por três dos maiores escritores de todos os tempos nascidos no Brasil: Machado de Assis, Lima Barreto e Mário de Andrade.
Mas Cruz e Sousa vale por si só, não precisa de associações enobrecedoras. Mesmo essa história de evocar sua condição de negro não passa de artifício para chamar a atenção sobre sua tão pouco conhecida poesia.
Pouco antes de sua partida para o interior de Minas Gerais -para onde foi em busca de saúde e de onde não voltaria senão depois de morto em 1898, num vagão de gado-, Cruz e Sousa entregara a seu amigo Nestor Vitor diversos manuscritos, dos quais resultaram seus três últimos livros: "Evocações" (1898), "Faróis" (1900) e "Últimos Sonetos" (1905), todos editados por Vitor, que mais tarde se destacaria como crítico da poesia simbolista.
Um dos aspectos relevantes para a leitura de "Evocações", além de se impor como uma das primeiras realizações sólidas do poema em prosa no Brasil, consiste nas fortes representações dos espaços escuros do sofrimento e da inconsciência dos delírios e dos desejos tal como se observa em "Tenebrosa", em cujo final se lê singularíssima figuração erótica.
Em "Faróis", Cruz e Sousa consolida o tema do poeta maldito, fundindo harmoniosamente uma tópica de natureza universal com traços da própria condição. Em "Últimos Sonetos", seu livro mais apreciado, o poeta, tendo acumulado enorme domínio técnico, dedica-se ao texto sapiencial ou reflexivo, com nítida preferência pela frase lapidar e concisa.


Ivan Teixeira, autor de "Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica" (Edusp), é professor de literatura na ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo)



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