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ANÁLISE
Cortejo recria e reafirma cultura popular
ANA CRISTINA MARINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para acompanhar o cortejo de folguedos pelas ruas de
Barbalha (CE), era preciso correr
contra o tempo. Havia boi, galantes e damas, burrinha, bode, mascarados, Mateus, gente que canta
benditos, os Irmãos Aniceto e até
uma réplica do Pau da Bandeira
de Santo Antônio, que saiu pela
primeira vez em maio e, por isso,
não atraiu moça casamenteira.
O pouco tempo (total de cerca
de quatro horas) fez com que os
grupos adaptassem as brincadeiras. Alguns bichos que aparecem
nos bois entraram num pé e saíram no outro; ema e girafa brincaram juntas, e o boi, morre-não-morre, acabou sem ressuscitar.
Já era noite e o menino mirradinho vestido de pastor não conseguia laçar o boi, que dava marradas para todo lado, assustava as
crianças e empurrava as moças
que se apertavam na roda.
Os Irmãos Aniceto, acostumados a esse tipo de apresentação,
escolheram alguns cantos de entrada, outros que servem para esquentar a festa, e terminaram
com a dança das facas.
Resumiram em alguns minutos
uma brincadeira que pode durar a
noite toda quando o motivo é comemorar um casamento ou a renovação do santo.
Cultura do dia-a-dia
O que se via no corpo dos homens que participavam do cortejo, o que se ouvia na voz dos que
entoavam benditos, de mulheres
como dona Valquíria, que cantava baixinho os cocos que aprendeu com o avô, é resultado de
uma cultura que se constrói nas
relações miúdas do dia-a-dia, que
não identifica na repetição de gestos e versos um indício de empobrecimento.
O tempo de aprender os passos,
de trocar experiências, esperar o
Mateus recuperar as energias,
tempo de tomar uma bebida, conversar com a dona da casa, fazer
uma oração para um santo de devoção, não cabe nesse tipo de
apresentação.
Mesmo assim, dava para se encantar com a mistura de ritmos, o
colorido das roupas, a alegria de
alguns diante das câmeras, a vaidade de outros diante de amigos e
vizinhos.
Era possível perceber nos gestos
e na expressão séria dos homens
que dançam o reisado as marcas
que diferenciam aqueles grupos
de outros que surgem nas cidades
e que se autodenominam "grupos
folclóricos".
Estes podem ter roupas novas,
cantar bem entoado, com todos
os "erres" e "esses", mas não trazem nos gestos, no canto, o registro de uma cultura que se constrói
nas relações de trabalho e solidariedade, na transmissão do saber
através de histórias de assombração e encantamento, na mistura
sem reservas entre coisas da terra
e do céu.
Fascínio das crianças
Guardo na memória o fascínio
de meninos e meninas diante do
boi e dos mascarados. Meninos
que aprendem a dançar desde pequenos, como um dos Aniceto, de
seis anos, que já acompanha os
mais velhos na brincadeira, no jeito de tocar pífano e de não deixar
cair o "chapéu de massa" da cabeça, mesmo com todas as evoluções que a dança exige.
Aquele menino traz no corpo as
marcas de uma cultura que muitos insistem em dizer que está
acabando, porque só conseguem
vê-la no passado, não percebem
que para existir precisa se renovar, mesmo que para isso tenha
que viver num tempo corrido.
Ana Cristina Marinho, 30, é doutoranda em literatura brasileira pela Universidade Federal da Paraíba e co-autora de
"Cordel na Sala de Aula" (ed. Duas Cidades), com Hélder Pinheiro, que será lançado este mês
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