São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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ANÁLISE

Cortejo recria e reafirma cultura popular

ANA CRISTINA MARINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para acompanhar o cortejo de folguedos pelas ruas de Barbalha (CE), era preciso correr contra o tempo. Havia boi, galantes e damas, burrinha, bode, mascarados, Mateus, gente que canta benditos, os Irmãos Aniceto e até uma réplica do Pau da Bandeira de Santo Antônio, que saiu pela primeira vez em maio e, por isso, não atraiu moça casamenteira.
O pouco tempo (total de cerca de quatro horas) fez com que os grupos adaptassem as brincadeiras. Alguns bichos que aparecem nos bois entraram num pé e saíram no outro; ema e girafa brincaram juntas, e o boi, morre-não-morre, acabou sem ressuscitar.
Já era noite e o menino mirradinho vestido de pastor não conseguia laçar o boi, que dava marradas para todo lado, assustava as crianças e empurrava as moças que se apertavam na roda.
Os Irmãos Aniceto, acostumados a esse tipo de apresentação, escolheram alguns cantos de entrada, outros que servem para esquentar a festa, e terminaram com a dança das facas.
Resumiram em alguns minutos uma brincadeira que pode durar a noite toda quando o motivo é comemorar um casamento ou a renovação do santo.

Cultura do dia-a-dia
O que se via no corpo dos homens que participavam do cortejo, o que se ouvia na voz dos que entoavam benditos, de mulheres como dona Valquíria, que cantava baixinho os cocos que aprendeu com o avô, é resultado de uma cultura que se constrói nas relações miúdas do dia-a-dia, que não identifica na repetição de gestos e versos um indício de empobrecimento.
O tempo de aprender os passos, de trocar experiências, esperar o Mateus recuperar as energias, tempo de tomar uma bebida, conversar com a dona da casa, fazer uma oração para um santo de devoção, não cabe nesse tipo de apresentação.
Mesmo assim, dava para se encantar com a mistura de ritmos, o colorido das roupas, a alegria de alguns diante das câmeras, a vaidade de outros diante de amigos e vizinhos.
Era possível perceber nos gestos e na expressão séria dos homens que dançam o reisado as marcas que diferenciam aqueles grupos de outros que surgem nas cidades e que se autodenominam "grupos folclóricos".
Estes podem ter roupas novas, cantar bem entoado, com todos os "erres" e "esses", mas não trazem nos gestos, no canto, o registro de uma cultura que se constrói nas relações de trabalho e solidariedade, na transmissão do saber através de histórias de assombração e encantamento, na mistura sem reservas entre coisas da terra e do céu.

Fascínio das crianças
Guardo na memória o fascínio de meninos e meninas diante do boi e dos mascarados. Meninos que aprendem a dançar desde pequenos, como um dos Aniceto, de seis anos, que já acompanha os mais velhos na brincadeira, no jeito de tocar pífano e de não deixar cair o "chapéu de massa" da cabeça, mesmo com todas as evoluções que a dança exige.
Aquele menino traz no corpo as marcas de uma cultura que muitos insistem em dizer que está acabando, porque só conseguem vê-la no passado, não percebem que para existir precisa se renovar, mesmo que para isso tenha que viver num tempo corrido.



Ana Cristina Marinho, 30, é doutoranda em literatura brasileira pela Universidade Federal da Paraíba e co-autora de "Cordel na Sala de Aula" (ed. Duas Cidades), com Hélder Pinheiro, que será lançado este mês



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