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LIVROS/LANÇAMENTOS
"MINHA MÃE MORRENDO E O MENINO MENTIDO"
Apuro visual é marca
Xavier se soma aos mistérios decifráveis da literatura
DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A literatura brasileira ainda acoberta alguns mistérios, pequenos e grandes, decifráveis. Pretendo aqui introduzir a
miniteoria de que a crítica literária só se firma e desenvolve após a
decifração sígnica do texto.
Ainda assim, com uma ressalva
tempórica: só se aplica com justeza à produção dos dois últimos
séculos, pois antes disso decifração e crítica corriam paralelas e
concomitantes, óbvia e logicamente, como se observa até o século 18 inglês, com o sucesso
exemplar do "Tristam Shandy",
de Laurence Sterne.
Decifrável é o mistério, artístico
ou científico, que se aponta para
ingressar na circulação sanguínea
da cultura e da civilização. Assim
como Baudelaire e Roman Jakobson abriram clareiras para o resgate/reavaliação de Edgar Poe;
T.S.Eliot, para os poetas metafísicos ingleses; Ezra Pound, para
Browning e os provençais; Greer-Cohn (e meu modesto aporte),
para "Um Lance de Dados", de
Mallarmé, assim Araripe Jr., para
Raul Pompéia; minha tese de
doutorado, "Semiótica e Literatura", 1973, para o "Brás Cubas", a
primeira grande obra de Machado de Assis; Guilhermino César e
vários outros (entre os quais me
incluo), para "Qorpo-Santo"; e
-últimos e primeiros- os irmãos Campos, para Sousândrade
e Gregório de Matos (com James
Amado).
Contudo, em que pese o grande
trabalho dos Campos, Sousândrade (1833-1902) está longe de
ser examinado e reconhecido como quem realmente foi e é, o mais
importante e complexo poeta
brasileiro do século 19.
Já a prosa ficcional brasileira
atual é de uma tal rasteirice, mesmo no cotejo internacional parcial com os hispano-americanos e
excetuado um e outro caso mais
esforçado, pois ela toda já vem
pré-decifrada e só se preocupa em
sobreviver entre duas margens
mercadológicas -a do best-seller
e a do pest-seller- que é de louvar-se, com surpresa e entusiasmo, o novo livro de Valêncio Xavier, "Minha Mãe Morrendo e o
Menino Mentido".
Tal como acontecera com "Os
Ratos", de Dyonélio Machado, o
único romance realmente moderno e bem realizado dos anos 30,
que ajudei a sacar do limbo nos
anos 70, Valêncio Xavier ingressa
finalmente na clareira das decifrações, 20 anos depois de sua obra
pioneira, "O Mez da Grippe".
Pode-se dizer que uma obra
bem editada contribui bastante
para ver seu percurso decifrável. É
o que está ocorrendo com Valêncio Xavier, que já está contando
com ótimas edições do principal
de sua produção grafoliterária.
Sua paixão pela narrativa visual,
em qualquer mídia, mas particularmente a impressa -de Franz
Mazerel a Zéfiro-, beira o fanatismo. Não produz muito, mas o
labor incansável do seu pensamento criativo, de facão e ficção e
memória em punho, leva-o, através de urzes, cipoais e sinais urbanos, a buscar uma tão ingênua
quanto impossível crono-situ-ação de prazer e arte. Que ele atinge! Toda obra inovadora passa
por muitos e variados estágios.
Lentos, muito lentos até, como é o
caso de Valêncio. Convém esclarecer: até chegar ao mainstream,
ou à "legitimação", como dizem
os meios acadêmicos brasileiros,
que nunca promoveram coisa nova alguma. "O Mez da Grippe"
ainda está a caminho - e aí está
"Minha Mãe Morrendo".
No primeiro, monta um jornal
de jornais da época, a ele introduzindo, ou melhor, nesse cenário
gráfico intervindo com um lance
narrativo erótico-detetivesco, que
vivifica toda a cenografia jornalística; no segundo, rebatendo a visão da maravilhosa mãe tuberculosa nua na banheira -ela, que
não o amava- flutuando sobre o
mar e sobre os espojos e despojos
de carnes sangrentas entrevistas
numa sala de cirurgia, grita o elevado desespero, desespEROS, da
infância projetada no hoje, e vice-versa, erotizando todo o passado
da vida, da escrita e do icônico.
Comovente a visão das mulheres odaliscando ricamente a vida
pobre. Razão de sobra para o
amor pela literatura. Que Valêncio Xavier resgata, invadindo,
com conhecimento, discernimento e design, outras áreas (e que lhe
sejam perdoadas certas daltônicas, como a abominável piada do
japonês). Dizia Sartre de Merleau-Ponty que a infância lhe foi um
paraíso do qual só foi expulso pela
idade. Com arte e dor, Valêncio
voltou -voltamos a ele. Conselho aos iniciantes valencianos:
leiam, primeiro, "O Menino Mentido", anotações para o principal.
Décio Pignatari é poeta e crítico, autor
de "Errâncias", entre outros
Minha Mãe Morrendo e o
Menino Mentido
Autor: Valêncio Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (224 págs.)
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