São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MINHA MÃE MORRENDO E O MENINO MENTIDO"

Apuro visual é marca


Xavier se soma aos mistérios decifráveis da literatura

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A literatura brasileira ainda acoberta alguns mistérios, pequenos e grandes, decifráveis. Pretendo aqui introduzir a miniteoria de que a crítica literária só se firma e desenvolve após a decifração sígnica do texto.
Ainda assim, com uma ressalva tempórica: só se aplica com justeza à produção dos dois últimos séculos, pois antes disso decifração e crítica corriam paralelas e concomitantes, óbvia e logicamente, como se observa até o século 18 inglês, com o sucesso exemplar do "Tristam Shandy", de Laurence Sterne.
Decifrável é o mistério, artístico ou científico, que se aponta para ingressar na circulação sanguínea da cultura e da civilização. Assim como Baudelaire e Roman Jakobson abriram clareiras para o resgate/reavaliação de Edgar Poe; T.S.Eliot, para os poetas metafísicos ingleses; Ezra Pound, para Browning e os provençais; Greer-Cohn (e meu modesto aporte), para "Um Lance de Dados", de Mallarmé, assim Araripe Jr., para Raul Pompéia; minha tese de doutorado, "Semiótica e Literatura", 1973, para o "Brás Cubas", a primeira grande obra de Machado de Assis; Guilhermino César e vários outros (entre os quais me incluo), para "Qorpo-Santo"; e -últimos e primeiros- os irmãos Campos, para Sousândrade e Gregório de Matos (com James Amado).
Contudo, em que pese o grande trabalho dos Campos, Sousândrade (1833-1902) está longe de ser examinado e reconhecido como quem realmente foi e é, o mais importante e complexo poeta brasileiro do século 19.
Já a prosa ficcional brasileira atual é de uma tal rasteirice, mesmo no cotejo internacional parcial com os hispano-americanos e excetuado um e outro caso mais esforçado, pois ela toda já vem pré-decifrada e só se preocupa em sobreviver entre duas margens mercadológicas -a do best-seller e a do pest-seller- que é de louvar-se, com surpresa e entusiasmo, o novo livro de Valêncio Xavier, "Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido".
Tal como acontecera com "Os Ratos", de Dyonélio Machado, o único romance realmente moderno e bem realizado dos anos 30, que ajudei a sacar do limbo nos anos 70, Valêncio Xavier ingressa finalmente na clareira das decifrações, 20 anos depois de sua obra pioneira, "O Mez da Grippe".
Pode-se dizer que uma obra bem editada contribui bastante para ver seu percurso decifrável. É o que está ocorrendo com Valêncio Xavier, que já está contando com ótimas edições do principal de sua produção grafoliterária.
Sua paixão pela narrativa visual, em qualquer mídia, mas particularmente a impressa -de Franz Mazerel a Zéfiro-, beira o fanatismo. Não produz muito, mas o labor incansável do seu pensamento criativo, de facão e ficção e memória em punho, leva-o, através de urzes, cipoais e sinais urbanos, a buscar uma tão ingênua quanto impossível crono-situ-ação de prazer e arte. Que ele atinge! Toda obra inovadora passa por muitos e variados estágios. Lentos, muito lentos até, como é o caso de Valêncio. Convém esclarecer: até chegar ao mainstream, ou à "legitimação", como dizem os meios acadêmicos brasileiros, que nunca promoveram coisa nova alguma. "O Mez da Grippe" ainda está a caminho - e aí está "Minha Mãe Morrendo".
No primeiro, monta um jornal de jornais da época, a ele introduzindo, ou melhor, nesse cenário gráfico intervindo com um lance narrativo erótico-detetivesco, que vivifica toda a cenografia jornalística; no segundo, rebatendo a visão da maravilhosa mãe tuberculosa nua na banheira -ela, que não o amava- flutuando sobre o mar e sobre os espojos e despojos de carnes sangrentas entrevistas numa sala de cirurgia, grita o elevado desespero, desespEROS, da infância projetada no hoje, e vice-versa, erotizando todo o passado da vida, da escrita e do icônico.
Comovente a visão das mulheres odaliscando ricamente a vida pobre. Razão de sobra para o amor pela literatura. Que Valêncio Xavier resgata, invadindo, com conhecimento, discernimento e design, outras áreas (e que lhe sejam perdoadas certas daltônicas, como a abominável piada do japonês). Dizia Sartre de Merleau-Ponty que a infância lhe foi um paraíso do qual só foi expulso pela idade. Com arte e dor, Valêncio voltou -voltamos a ele. Conselho aos iniciantes valencianos: leiam, primeiro, "O Menino Mentido", anotações para o principal.


Décio Pignatari é poeta e crítico, autor de "Errâncias", entre outros



Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido
    
Autor: Valêncio Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (224 págs.)




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