São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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"DIÁRIO DE UM DETENTO"

Jocenir narra o "circo de horrores" do universo da prisão

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

Jocenir, ex-detento que conheceu Mano Brown enquanto estava preso no Carandiru, emprestou versos como "fumaça na janela, tem fogo na cela, fodeu, foi além, e se pã tem refém" para a música "Diário de um Detento", dos Racionais MC's.
Agora, em liberdade, depois de cumprir pena por receptação de carga roubada, num confuso processo criminal que o condenou a oito anos e três meses de reclusão, Jocenir lança o livro "Diário de um Detento", em que conta a sua prisão e a rotina sufocante das prisões em que foi forçado a viver: as cadeias públicas de Barueri e Osasco e os presídios Casa de Detenção e Avaré.
O rap, lançado em 1997 no disco "Sobrevivendo no Inferno", alavancou a carreira do grupo e certamente pertence ao time das músicas brasileiras que marcaram época.
A letra, um épico deslumbrante, com imagens fortes e uma poética única ("ratatá, mais um metrô vai passar"), que envolve denúncia, coração, crônica e arrojo ("tic-tac, ainda é 9h40, o relógio na cadeia anda em câmera lenta"), já foi cantada por manos, minas e "playbas", que sabiam de cor refrão por refrão, e impulsionou o movimento rap, exportando-o para fora da "perifa".
No livro "Diário de um Detento", Jocenir refreia a sua semântica assombrosa e parte para uma narrativa simples, didática, com começo, meio e fim, apontando as inúmeras falhas do sistema e navegando em torno do estresse que imprime a vida na cadeia. A todo tempo, todo instante, resolvem-se encrencas, desfazem-se mal-entendidos e namora-se a morte: "Precisávamos de muita cautela nos atos e nas palavras...".
O autor contextualiza as ações, descreve em detalhes o inferno em que sobrevive, cadeias cujas celas, "X", com 20 metros quadrados, têm tetos escuros em razão do grande consumo de cigarros e drogas.
Os presos estão envoltos em mantas encardidas, dormem sentados ou pendurados em paredes e grades, molestados por sarna e piolho, comem comida azeda e têm a fisionomia atormentada, roupas gastas e surradas. São despenteados, desdentados, pálidos, "um circo de horrores", como define, em que são criados outros princípios.
Sua prisão, segundo conta, aconteceu numa atrapalhada policial: policiais da divisão de narcóticos se envolveram numa operação ilegal com uma gangue de cargas roubadas, que incluía o irmão do autor, Márcio, fora da jurisdição. Jocenir foi obrigado a assumir a culpa, caso contrário "assinaria tráfico de drogas".
O calvário do autor começa em apertadas cadeias públicas. Primeiro, sobreviver à tortura policial. Depois, impor-se à desconfiança dos presos. Testemunhou uma rebelião. Foi vítima de extorsão de alguns detentos e recebeu a surpreendente solidariedade de outros.
Ele conta como as facções de presos se organizam -sempre há um chefe, um cacique, em uma cadeia, que se fortalece na dinâmica do tráfico.
Em cada transferência, é de praxe levar uma surra de carcereiros ou policiais; numa delas, o autor viu PMs introduzirem um cabo com fezes na boca dos presos; numa outra, recebeu golpes de um PM com luvas de boxe, que treinava socos em detentos.
O autor sangue-bom angariou simpatia da massa carcerária, pois sabia escrever. Redigiu cartas de presos, poemas de amor e, inclusive, o estatuto da facção CDL (Comando Democrático da Liberdade), que disputa com o PCC (Primeiro Comando da Capital) o controle de alguns presídios paulistas.
Segundo a narrativa, comparada às cadeias públicas, a Detenção parece um paraíso. Nem sempre. Autogerida pelos próprios presos, diversas confusões são armadas, e as condenações dos julgamentos informais são sempre a mesma: subir com o réu (matá-lo).
O leitor pode ler todos os livros de encarcerados já publicados, mas sempre encontra uma surpresa. Em "Diário de um Detento", descobre-se que a massa carcerária adora telenovelas. Assiste à TV até de madrugada. Grupos inteiros de detentos comentam, nos pátios, cenas e capítulos, fazem previsões e conjecturas, analisam situações e torcem por determinados personagens.
Segundo o autor, a morte do personagem Ralph (da novela "Rei do Gado", Rede Globo), considerado na época "o maior vilão da Casa de Detenção", foi comemorada no presídio, uma comemoração que "igualou-se aos festejos de uma final de campeonato paulista".


Diário de um Detento
    
Autor: Jocenir
Editora: Labortexto
Preço: R$ 18 (182 págs.)




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