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"DIÁRIO DE UM DETENTO"
Jocenir narra o "circo de horrores" do universo da prisão
MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA
Jocenir, ex-detento que conheceu Mano Brown enquanto estava preso no Carandiru, emprestou versos como "fumaça na
janela, tem fogo na cela, fodeu, foi
além, e se pã tem refém" para a
música "Diário de um Detento",
dos Racionais MC's.
Agora, em liberdade, depois de
cumprir pena por receptação de
carga roubada, num confuso processo criminal que o condenou a
oito anos e três meses de reclusão,
Jocenir lança o livro "Diário de
um Detento", em que conta a sua
prisão e a rotina sufocante das
prisões em que foi forçado a viver:
as cadeias públicas de Barueri e
Osasco e os presídios Casa de Detenção e Avaré.
O rap, lançado em 1997 no disco
"Sobrevivendo no Inferno", alavancou a carreira do grupo e certamente pertence ao time das músicas brasileiras que marcaram
época.
A letra, um épico deslumbrante,
com imagens fortes e uma poética
única ("ratatá, mais um metrô vai
passar"), que envolve denúncia,
coração, crônica e arrojo ("tic-tac,
ainda é 9h40, o relógio na cadeia
anda em câmera lenta"), já foi
cantada por manos, minas e
"playbas", que sabiam de cor refrão por refrão, e impulsionou o
movimento rap, exportando-o
para fora da "perifa".
No livro "Diário de um Detento", Jocenir refreia a sua semântica assombrosa e parte para uma
narrativa simples, didática, com
começo, meio e fim, apontando as
inúmeras falhas do sistema e navegando em torno do estresse que
imprime a vida na cadeia. A todo
tempo, todo instante, resolvem-se
encrencas, desfazem-se mal-entendidos e namora-se a morte:
"Precisávamos de muita cautela
nos atos e nas palavras...".
O autor contextualiza as ações,
descreve em detalhes o inferno
em que sobrevive, cadeias cujas
celas, "X", com 20 metros quadrados, têm tetos escuros em razão
do grande consumo de cigarros e
drogas.
Os presos estão envoltos em
mantas encardidas, dormem sentados ou pendurados em paredes
e grades, molestados por sarna e
piolho, comem comida azeda e
têm a fisionomia atormentada,
roupas gastas e surradas. São despenteados, desdentados, pálidos,
"um circo de horrores", como define, em que são criados outros
princípios.
Sua prisão, segundo conta,
aconteceu numa atrapalhada policial: policiais da divisão de narcóticos se envolveram numa operação ilegal com uma gangue de
cargas roubadas, que incluía o irmão do autor, Márcio, fora da jurisdição. Jocenir foi obrigado a assumir a culpa, caso contrário "assinaria tráfico de drogas".
O calvário do autor começa em
apertadas cadeias públicas. Primeiro, sobreviver à tortura policial. Depois, impor-se à desconfiança dos presos. Testemunhou
uma rebelião. Foi vítima de extorsão de alguns detentos e recebeu a
surpreendente solidariedade de
outros.
Ele conta como as facções de
presos se organizam -sempre há
um chefe, um cacique, em uma
cadeia, que se fortalece na dinâmica do tráfico.
Em cada transferência, é de praxe levar uma surra de carcereiros
ou policiais; numa delas, o autor
viu PMs introduzirem um cabo
com fezes na boca dos presos; numa outra, recebeu golpes de um
PM com luvas de boxe, que treinava socos em detentos.
O autor sangue-bom angariou
simpatia da massa carcerária,
pois sabia escrever. Redigiu cartas
de presos, poemas de amor e, inclusive, o estatuto da facção CDL
(Comando Democrático da Liberdade), que disputa com o PCC
(Primeiro Comando da Capital) o
controle de alguns presídios paulistas.
Segundo a narrativa, comparada às cadeias públicas, a Detenção
parece um paraíso. Nem sempre.
Autogerida pelos próprios presos,
diversas confusões são armadas, e
as condenações dos julgamentos
informais são sempre a mesma:
subir com o réu (matá-lo).
O leitor pode ler todos os livros
de encarcerados já publicados,
mas sempre encontra uma surpresa. Em "Diário de um Detento", descobre-se que a massa carcerária adora telenovelas. Assiste
à TV até de madrugada. Grupos
inteiros de detentos comentam,
nos pátios, cenas e capítulos, fazem previsões e conjecturas, analisam situações e torcem por determinados personagens.
Segundo o autor, a morte do
personagem Ralph (da novela
"Rei do Gado", Rede Globo), considerado na época "o maior vilão
da Casa de Detenção", foi comemorada no presídio, uma comemoração que "igualou-se aos festejos de uma final de campeonato
paulista".
Diário de um Detento
Autor: Jocenir
Editora: Labortexto
Preço: R$ 18 (182 págs.)
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