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WALTER SALLES
Ronald Biggs e a ilusão da "terra sem mal"
"A situação tá tão braba
que nem o Ronald Biggs
aguentou a violência e os trambiques do Brasil", anuncia o taxista
que me leva do aeroporto até o
centro do Rio. Difícil contra-argumentar. São 45 mil homicídios cometidos anualmente no Brasil
-uma Guerra do Vietnã por ano
ou quatro vezes o número total de
mortos na Bósnia. A pena de
morte foi trivializada nas ruas e
nas prisões. Nos hospitais, as UTIs
foram obrigadas a adotar uma
medicina de guerra. "O Biggs é esperto, preferiu ficar preso lá fora a
ficar solto no Brasil", complementa o taxista.
O confronto social antecipado
por Rubem Fonseca em "Feliz
Ano Novo" se transformou numa
guerra civil surda. Talvez estejamos, na verdade, mais próximos
de outro livro de Fonseca, "O Cobrador". Julgamentos sumários,
adversários assassinados pelas
costas. Uma violência difusa e irracional tomou conta dos maiores centros urbanos do país, atingindo até pessoas engajadas na
batalha contra a injustiça social
brasileira, como o corajoso Marcelo Yuka, baterista de O Rappa.
O resto do noticiário não ajuda
a levantar o ânimo. A começar
pela farsa pirandelliana do Congresso, uma gigantesca pizza que
poderíamos desde já batizar de "a
cada um sua verdade". Tem mais.
Estevão e Naya à solta. Lalau a
um passo de sair da prisão. Pouco
mudou no Brasil nas últimas décadas -cadeia só para pobres e
negros.
Para a geração que acreditou
que a queda de Collor fosse coibir
a corrupção e dar origem a um
país mais justo, é um osso duro de
roer. Fica a lição de que, para mudar realmente o Brasil, é preciso ir
além, ter coragem de mexer nas
estruturas do país, não realizar
alianças espúrias etc.
Um amigo me diz que o pior, no
momento em que vivemos, é a
sensação de impotência que nos
envolve. Certo. Mas também é
possível, no meio desse caos, perceber alguns sinais que vão na direção contrária das bandalheiras
do país oficial.
São pequenas transformações
realizadas por pessoas anônimas
ou por governos municipais que
avançam silenciosamente, atendendo a comunidades com a convicção de que mudar não é só possível, mas, sobretudo, vital.
Um exemplo. Cinco anos atrás,
atravessei parte do sertão brasileiro à procura de locações para
"Central do Brasil". Uma das cidades visitadas foi Vitória da
Conquista, terra de Glauber Rocha, localizada no Polígono das
Secas. Área de migração, Conquista tinha um grande número
de crianças carentes ou abandonadas. Algumas viviam no aterro
sanitário da cidade -o lixão.
Em cinco anos, muita coisa mudou -para melhor. Um projeto-modelo abriga hoje 400 crianças e
adolescentes carentes entre sete e
17 anos. Premiado pelo Unicef, o
programa Conquista Criança se
recusa a praticar o assistencialismo. Ao contrário, tenta educar
para o exercício da cidadania. As
crianças têm acesso à escola e a
atendimento médico, odontológico e psicológico. Aprendem capoeira e outros esportes. O grupo
de teatro ensaia peças de autores
brasileiros e textos de autoria coletiva. Os alunos participam de
oficinas profissionalizantes e recebem bolsas para incentivar a
assiduidade. Fazem parte da rede
de informática, criada pelo Conquista Criança, 120 crianças.
Aprendem não só a operar, mas
também a consertar computadores.
Mais de 60 dessas crianças foram retiradas do lixão da cidade.
Isso foi possível mesmo sob o fogo
cruzado do governo pefelista da
Bahia -Guilherme Menezes, o
prefeito de Vitória da Conquista,
é um médico filiado a um partido
que faz oposição a ACM.
Menezes não é um exemplo solitário. Ao retornar de um período
de três anos no Balé Nacional de
Cuba, a bailarina Thereza Aguilar criou o projeto Dançando para Não Dançar, que possibilita a
formação profissional na área da
dança a crianças dos morros cariocas.
Balé em favela? No início, sete
anos atrás, Thereza deu de cara
com portas fechadas e formas diferentes de discriminação. O primeiro apoio veio da Associação
dos Moradores do Pavão e Cantagalo, na zona sul do Rio. Thereza
colocou cartazes nesses morros,
convocando as crianças. Foram
oferecidas 40 vagas. Inscreveram-se 280 crianças.
Poucos dias atrás, pude assistir
à inauguração do projeto Dançando para Não Dançar no centro comunitário da Mangueira
-hoje, o sétimo morro atendido.
Penso que Cartola e Dona Neuma
teriam ficado felizes. Além das
aulas de dança, as crianças recebem acesso a médico, a dentista e
a assistente social. Pelo rosto dos
pais, percebe-se que o resultado
aqui transcende em muito o balé.
Por meio do aumento da auto-estima e do desenvolvimento da noção de cidadania, as crianças se
tornam mais preparadas para
não dançarem no asfalto -e na
vida.
É evidente que o Conquista
Criança e o Dançando para Não
Dançar são projetos que exprimem um desejo de mudança, mas
que não conseguem nem pretendem resolver todos os problemas
das comunidades que atendem.
Alguns contra-exemplos: com o
empobrecimento da população,
Vitória da Conquista enfrenta situações de trabalho infantil em
feiras. Já algumas alunas do Dançando abandonam o projeto aos
13 ou 14 anos -grávidas.
A violência é hoje constitutiva
do Brasil. A pobreza represada e a
bandalheira institucionalizada
são inaceitáveis. O Brasil está a
anos-luz do território que os índios tupis chamavam de a "terra
sem mal" -antes de serem dizimados. Mas ainda há, em alguns
cantos do país, gente que trabalha
seriamente, sem alarde, para que
deixemos algum dia de ouvir que
"do jeito que vai, esse país não
corre o perigo de dar certo". Prefiro acreditar nisso.
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