São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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WALTER SALLES

Ronald Biggs e a ilusão da "terra sem mal"

"A situação tá tão braba que nem o Ronald Biggs aguentou a violência e os trambiques do Brasil", anuncia o taxista que me leva do aeroporto até o centro do Rio. Difícil contra-argumentar. São 45 mil homicídios cometidos anualmente no Brasil -uma Guerra do Vietnã por ano ou quatro vezes o número total de mortos na Bósnia. A pena de morte foi trivializada nas ruas e nas prisões. Nos hospitais, as UTIs foram obrigadas a adotar uma medicina de guerra. "O Biggs é esperto, preferiu ficar preso lá fora a ficar solto no Brasil", complementa o taxista.
O confronto social antecipado por Rubem Fonseca em "Feliz Ano Novo" se transformou numa guerra civil surda. Talvez estejamos, na verdade, mais próximos de outro livro de Fonseca, "O Cobrador". Julgamentos sumários, adversários assassinados pelas costas. Uma violência difusa e irracional tomou conta dos maiores centros urbanos do país, atingindo até pessoas engajadas na batalha contra a injustiça social brasileira, como o corajoso Marcelo Yuka, baterista de O Rappa.
O resto do noticiário não ajuda a levantar o ânimo. A começar pela farsa pirandelliana do Congresso, uma gigantesca pizza que poderíamos desde já batizar de "a cada um sua verdade". Tem mais. Estevão e Naya à solta. Lalau a um passo de sair da prisão. Pouco mudou no Brasil nas últimas décadas -cadeia só para pobres e negros.
Para a geração que acreditou que a queda de Collor fosse coibir a corrupção e dar origem a um país mais justo, é um osso duro de roer. Fica a lição de que, para mudar realmente o Brasil, é preciso ir além, ter coragem de mexer nas estruturas do país, não realizar alianças espúrias etc.
Um amigo me diz que o pior, no momento em que vivemos, é a sensação de impotência que nos envolve. Certo. Mas também é possível, no meio desse caos, perceber alguns sinais que vão na direção contrária das bandalheiras do país oficial.
São pequenas transformações realizadas por pessoas anônimas ou por governos municipais que avançam silenciosamente, atendendo a comunidades com a convicção de que mudar não é só possível, mas, sobretudo, vital.
Um exemplo. Cinco anos atrás, atravessei parte do sertão brasileiro à procura de locações para "Central do Brasil". Uma das cidades visitadas foi Vitória da Conquista, terra de Glauber Rocha, localizada no Polígono das Secas. Área de migração, Conquista tinha um grande número de crianças carentes ou abandonadas. Algumas viviam no aterro sanitário da cidade -o lixão.
Em cinco anos, muita coisa mudou -para melhor. Um projeto-modelo abriga hoje 400 crianças e adolescentes carentes entre sete e 17 anos. Premiado pelo Unicef, o programa Conquista Criança se recusa a praticar o assistencialismo. Ao contrário, tenta educar para o exercício da cidadania. As crianças têm acesso à escola e a atendimento médico, odontológico e psicológico. Aprendem capoeira e outros esportes. O grupo de teatro ensaia peças de autores brasileiros e textos de autoria coletiva. Os alunos participam de oficinas profissionalizantes e recebem bolsas para incentivar a assiduidade. Fazem parte da rede de informática, criada pelo Conquista Criança, 120 crianças. Aprendem não só a operar, mas também a consertar computadores.
Mais de 60 dessas crianças foram retiradas do lixão da cidade. Isso foi possível mesmo sob o fogo cruzado do governo pefelista da Bahia -Guilherme Menezes, o prefeito de Vitória da Conquista, é um médico filiado a um partido que faz oposição a ACM.
Menezes não é um exemplo solitário. Ao retornar de um período de três anos no Balé Nacional de Cuba, a bailarina Thereza Aguilar criou o projeto Dançando para Não Dançar, que possibilita a formação profissional na área da dança a crianças dos morros cariocas.
Balé em favela? No início, sete anos atrás, Thereza deu de cara com portas fechadas e formas diferentes de discriminação. O primeiro apoio veio da Associação dos Moradores do Pavão e Cantagalo, na zona sul do Rio. Thereza colocou cartazes nesses morros, convocando as crianças. Foram oferecidas 40 vagas. Inscreveram-se 280 crianças.
Poucos dias atrás, pude assistir à inauguração do projeto Dançando para Não Dançar no centro comunitário da Mangueira -hoje, o sétimo morro atendido. Penso que Cartola e Dona Neuma teriam ficado felizes. Além das aulas de dança, as crianças recebem acesso a médico, a dentista e a assistente social. Pelo rosto dos pais, percebe-se que o resultado aqui transcende em muito o balé. Por meio do aumento da auto-estima e do desenvolvimento da noção de cidadania, as crianças se tornam mais preparadas para não dançarem no asfalto -e na vida.
É evidente que o Conquista Criança e o Dançando para Não Dançar são projetos que exprimem um desejo de mudança, mas que não conseguem nem pretendem resolver todos os problemas das comunidades que atendem. Alguns contra-exemplos: com o empobrecimento da população, Vitória da Conquista enfrenta situações de trabalho infantil em feiras. Já algumas alunas do Dançando abandonam o projeto aos 13 ou 14 anos -grávidas.
A violência é hoje constitutiva do Brasil. A pobreza represada e a bandalheira institucionalizada são inaceitáveis. O Brasil está a anos-luz do território que os índios tupis chamavam de a "terra sem mal" -antes de serem dizimados. Mas ainda há, em alguns cantos do país, gente que trabalha seriamente, sem alarde, para que deixemos algum dia de ouvir que "do jeito que vai, esse país não corre o perigo de dar certo". Prefiro acreditar nisso.



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