São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 2006

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ANÁLISE

Cineasta transita no território da arte moderna

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

O grande evento que reúne mais de 200 produções de e sobre Godard num dos principais templos da arte moderna e contemporânea faz todo sentido. Não só porque o cineasta franco-suíço seja considerado por muitos um gênio do cinema ou que, aos 75 anos, tenha aceitado se submeter a reverências. Ao contrário, como atesta o confronto dele com o curador Dominique Païni.
Pois é no campo de forças das artes moderna e contemporânea muito mais que no do cinema em seu sentido tradicional que se deve entender a contribuição estética de JLG e, portanto, essa celebração nas salas do Beaubourg.
A cronologia fez do século 20 um recorte temporal dominado, por um lado, pelas sucessivas rupturas de vanguarda que constituíram a dinâmica criadora da arte moderna e, por outro, pela experimentação de limites (significados, materiais, suportes e, por fim, o próprio conceito de arte).
A obra de Godard transita entre esses dois mundos. Da modernidade, herdou o gosto pela ruptura, a busca de uma poética que ultrapassasse a estabilidade enganosa do sentido. E levou essa pesquisa para o cinema por meio de filmes em que forjou uma linguagem em desacordo tanto com o relato romanesco quanto com a representação do drama teatral.
Mais interessante foi sua proposta de romper com a linguagem de dentro da própria linguagem. Seus filmes não se parecem com aqueles produzidos pelos cineastas de vanguarda, pois, enquanto estes tentaram ampliar o cinema como forma de percepção, Godard encontrou nos filmes o material para construir dentro deles outras formas de expressão. Um pouco, a título de comparação, como Picasso havia feito com a colagem em seus trabalhos que antecipam o cubismo.
Godard encontrou tal material primeiro como cinéfilo, depois como crítico de cinema. Foi, portanto, manipulando, criticando e desconstruindo o poder mitológico das imagens cinematográficas que ele produziu seu discurso.
Godard talvez seja o cineasta que mais levou a sério o que Griffith construiu num filme cujo título já diz tudo: "O Nascimento de uma Nação" -ou como produzir uma imagem para que um país possa nela se refletir. O mesmo em relação a Eisenstein e à produção de uma estética revolucionária. E não menos de um cinema que se industrializou para se transformar numa grande máquina de histórias, fenômeno que Godard interpreta não como a fabricação de histórias quaisquer, mas da história do próprio século 20 -ou história(s), como ele prefere que se escreva.
Com a contemporaneidade, o diretor compartilha a consciência dos limites da arte, no caso os do próprio cinema. A heterogeneidade de materiais, de histórias e de imagens, uma constante já nos trabalhos dos anos 60, ganha em amplitude nos filmes que marcaram seu retorno às salas de cinema depois da militância coletiva no Grupo Dziga Vertov.
Associado à ambição antiilusionista que desde sempre constituiu sua obra, o acúmulo de referências é uma maneira de escapar da simplificação e da ilusória forma de apresentar o mundo por meio da representação.
O espectador muitas vezes atônito se queixa da perda de inteligibilidade nesses filmes. A impressão de que quase nunca se entende o que (ou do que) Godard está falando pode (e deve) ser substituída por uma compreensão do fragmento: seja a leitura de um texto poético, a audição de um trecho de Mozart ou Beethoven ou um plano extraordinariamente bem construído. A impressão de caos se deve apenas ao antigo mau hábito de querer entender pela totalidade. Pois aqui, como desde a modernidade, é o fragmento que permite combinar o sentido e a beleza.
Trata-se também de enfatizar que, com o século das imagens e das narrativas totalizantes, o cinema também findou. Mas, como os artistas sobrevivem, continua nas mãos deles a tarefa de celebrar infinitamente seu funeral.


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