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ANÁLISE
Cineasta transita no território da arte moderna
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
O grande evento que reúne
mais de 200 produções de e
sobre Godard num dos principais
templos da arte moderna e contemporânea faz todo sentido. Não
só porque o cineasta franco-suíço
seja considerado por muitos um
gênio do cinema ou que, aos 75
anos, tenha aceitado se submeter
a reverências. Ao contrário, como
atesta o confronto dele com o curador Dominique Païni.
Pois é no campo de forças das
artes moderna e contemporânea
muito mais que no do cinema em
seu sentido tradicional que se deve entender a contribuição estética de JLG e, portanto, essa celebração nas salas do Beaubourg.
A cronologia fez do século 20
um recorte temporal dominado,
por um lado, pelas sucessivas rupturas de vanguarda que constituíram a dinâmica criadora da arte
moderna e, por outro, pela experimentação de limites (significados, materiais, suportes e, por
fim, o próprio conceito de arte).
A obra de Godard transita entre
esses dois mundos. Da modernidade, herdou o gosto pela ruptura, a busca de uma poética que ultrapassasse a estabilidade enganosa do sentido. E levou essa pesquisa para o cinema por meio de
filmes em que forjou uma linguagem em desacordo tanto com o
relato romanesco quanto com a
representação do drama teatral.
Mais interessante foi sua proposta de romper com a linguagem
de dentro da própria linguagem.
Seus filmes não se parecem com
aqueles produzidos pelos cineastas de vanguarda, pois, enquanto
estes tentaram ampliar o cinema
como forma de percepção, Godard encontrou nos filmes o material para construir dentro deles
outras formas de expressão. Um
pouco, a título de comparação,
como Picasso havia feito com a
colagem em seus trabalhos que
antecipam o cubismo.
Godard encontrou tal material
primeiro como cinéfilo, depois
como crítico de cinema. Foi, portanto, manipulando, criticando e
desconstruindo o poder mitológico das imagens cinematográficas
que ele produziu seu discurso.
Godard talvez seja o cineasta
que mais levou a sério o que Griffith construiu num filme cujo título já diz tudo: "O Nascimento
de uma Nação" -ou como produzir uma imagem para que um
país possa nela se refletir. O mesmo em relação a Eisenstein e à
produção de uma estética revolucionária. E não menos de um cinema que se industrializou para
se transformar numa grande máquina de histórias, fenômeno que
Godard interpreta não como a fabricação de histórias quaisquer,
mas da história do próprio século
20 -ou história(s), como ele prefere que se escreva.
Com a contemporaneidade, o
diretor compartilha a consciência
dos limites da arte, no caso os do
próprio cinema. A heterogeneidade de materiais, de histórias e
de imagens, uma constante já nos
trabalhos dos anos 60, ganha em
amplitude nos filmes que marcaram seu retorno às salas de cinema depois da militância coletiva
no Grupo Dziga Vertov.
Associado à ambição antiilusionista que desde sempre constituiu
sua obra, o acúmulo de referências é uma maneira de escapar da
simplificação e da ilusória forma
de apresentar o mundo por meio
da representação.
O espectador muitas vezes atônito se queixa da perda de inteligibilidade nesses filmes. A impressão de que quase nunca se entende o que (ou do que) Godard está
falando pode (e deve) ser substituída por uma compreensão do
fragmento: seja a leitura de um
texto poético, a audição de um
trecho de Mozart ou Beethoven
ou um plano extraordinariamente bem construído. A impressão
de caos se deve apenas ao antigo
mau hábito de querer entender
pela totalidade. Pois aqui, como
desde a modernidade, é o fragmento que permite combinar o
sentido e a beleza.
Trata-se também de enfatizar
que, com o século das imagens e
das narrativas totalizantes, o cinema também findou. Mas, como
os artistas sobrevivem, continua
nas mãos deles a tarefa de celebrar
infinitamente seu funeral.
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