São Paulo, sábado, 12 de maio de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Vagas para leitores

O jovem escritor Gonçalo Tavares faz o didatismo das anti-fábulas brechtianas render iluminações

NÃO FOSSE a língua comum, haveria muitos outros motivos para abrirmos espaço nas estantes, acomodando os volumes de "O Bairro", série em progresso de pequenos contos em que Gonçalo M. Tavares, 37, jovem escritor português nascido em Angola, instalou uma comunidade imaginária de autênticos criadores. Os quatro volumes lançados pela Casa da Palavra -"O Senhor Kraus", "O Senhor Calvino", "O Senhor Brecht", "O Senhor Juarroz"- apresentam um projeto que, conjugando espaço e literatura, se nutre do convívio íntimo com os mundos particulares inventados por cada um destes singulares senhores, devolvendo-o sob a forma de paisagens humanas que se percorre de uma sentada.
Os livros guardam algo do miniaturista que vai além do pastiche caricato de seus vizinhos por afinidades eletivas. Gonçalo Tavares se apossa seguro do corte irônico e da forma breve, sem rebarbas, como os poemas em prosa de "O Homem ou É Tonto ou É Mulher" demonstram: "A primeira vez que matei um homem eu próprio ainda não/ era um homem./ Depois disso cresci rapidamente./ Não sei se foi das vitaminas ou do sangue". A língua chã, bordejando a platitude, se associa a uma estranheza que lembra a poesia difícil de classificar de Chico Alvim, ao mesmo tempo pessoalíssima e discreta, anônima.
Tem razão José Saramago que qualificou sua escrita como escandalosamente madura para seus 30 e poucos anos. "Jerusalém" (2005), romance aqui publicado pela Companhia das Letras, parte de uma planejada tetralogia intitulada "O Reino", é um romance muito diverso, em tom (sombrio) e matéria, da série agora lançada. Povoado por personagens torturados, à beira do desequilíbrio, flertando com o suicídio, a loucura ou o rancor homicida, maníacos sonhando soluções finais, delírios positivistas e totalitários, com nomes pouco ibéricos como Spengler ou Hinnerk, o livro deixa clara a experiência histórica com a qual mede forças desiguais. Estruturalmente, o contraponto de vozes e tempos individuais é conduzido com idêntica maestria.
A fantasia de um condomínio ideal em que os grandes nomes da literatura ocidental esbarrem, conosco e entre si, pelas ruas tem um apelo próprio. É nos atritos entre as mônadas imaginativas e o mundo funcional que Tavares faz o didatismo das anti-fábulas brechtianas render iluminações, o gume satírico de vienense Karl Kraus (1936-1974) voltar-se contra a encarnação sinistra e ridícula do poder nos chefes e seus séquitos, a disposição metafísica e inassimilável da poesia do argentino Roberto Juarroz (1925-1975) ganhar contornos, as extravagâncias claras de Italo Calvino (1923-1985) tomarem corpo. Tavares nos oferece uma temporada entre eles e nem nos damos conta da simplicidade dos quartos de pensão.


COLEÇÃO O BAIRRO
Autor:
Gonçalo M. Tavares
Editora: Casa da Palavra
Quanto: R$ 19,90 (cada um); "O Senhor Kraus" (120 págs.), "O Senhor Calvino" (72 págs.), "O Senhor Brecht" (72 págs.), "O Senhor Juarroz" (64 págs.)
Avaliação: ótimo


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