|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Vagas para leitores
O jovem escritor Gonçalo Tavares faz o didatismo das anti-fábulas brechtianas render iluminações
NÃO FOSSE a língua comum,
haveria muitos outros motivos para abrirmos espaço
nas estantes, acomodando os volumes de "O Bairro", série em progresso de pequenos contos em que Gonçalo M. Tavares, 37, jovem escritor
português nascido em Angola, instalou uma comunidade imaginária de
autênticos criadores. Os quatro volumes lançados pela Casa da Palavra
-"O Senhor Kraus", "O Senhor Calvino", "O Senhor Brecht", "O Senhor
Juarroz"- apresentam um projeto
que, conjugando espaço e literatura,
se nutre do convívio íntimo com os
mundos particulares inventados
por cada um destes singulares senhores, devolvendo-o sob a forma
de paisagens humanas que se percorre de uma sentada.
Os livros guardam algo do miniaturista que vai além do pastiche caricato de seus vizinhos por afinidades
eletivas. Gonçalo Tavares se apossa
seguro do corte irônico e da forma
breve, sem rebarbas, como os poemas em prosa de "O Homem ou É
Tonto ou É Mulher" demonstram:
"A primeira vez que matei um homem eu próprio ainda não/ era um
homem./ Depois disso cresci rapidamente./ Não sei se foi das vitaminas ou do sangue". A língua chã, bordejando a platitude, se associa a uma
estranheza que lembra a poesia difícil de classificar de Chico Alvim, ao
mesmo tempo pessoalíssima e discreta, anônima.
Tem razão José Saramago que
qualificou sua escrita como escandalosamente madura para seus 30 e
poucos anos. "Jerusalém" (2005),
romance aqui publicado pela Companhia das Letras, parte de uma planejada tetralogia intitulada "O Reino", é um romance muito diverso,
em tom (sombrio) e matéria, da série agora lançada. Povoado por personagens torturados, à beira do desequilíbrio, flertando com o suicídio,
a loucura ou o rancor homicida, maníacos sonhando soluções finais, delírios positivistas e totalitários, com
nomes pouco ibéricos como Spengler ou Hinnerk, o livro deixa clara a
experiência histórica com a qual
mede forças desiguais. Estruturalmente, o contraponto de vozes e
tempos individuais é conduzido
com idêntica maestria.
A fantasia de um condomínio
ideal em que os grandes nomes da literatura ocidental esbarrem, conosco e entre si, pelas ruas tem um apelo próprio. É nos atritos entre as mônadas imaginativas e o mundo funcional que Tavares faz o didatismo
das anti-fábulas brechtianas render
iluminações, o gume satírico de vienense Karl Kraus (1936-1974) voltar-se contra a encarnação sinistra e
ridícula do poder nos chefes e seus
séquitos, a disposição metafísica e
inassimilável da poesia do argentino
Roberto Juarroz (1925-1975) ganhar contornos, as extravagâncias
claras de Italo Calvino (1923-1985)
tomarem corpo. Tavares nos oferece uma temporada entre eles e nem
nos damos conta da simplicidade
dos quartos de pensão.
COLEÇÃO O BAIRRO
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Casa da Palavra
Quanto: R$ 19,90 (cada um); "O Senhor Kraus"
(120 págs.), "O Senhor Calvino" (72 págs.), "O
Senhor Brecht" (72 págs.), "O Senhor Juarroz"
(64 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Livros - Crítica/ensaio: George Soros mostra seu lado "filósofo" Índice
|