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O papel da arrogância no naufrágio liberal
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Eles usam terno de risca de
giz. Eles têm a pele bronzeada
o ano inteiro. Usam terno de
risca de giz, têm a pele bronzeada e se consideram os únicos capazes de dirigir a Inglaterra.
Eles deviam ser enxotados
por um tempo, para esquecerem este argumento de que os
adversários são incompetentes
e vão levar o país para o abismo, caso conquistem o poder.
São apenas algumas afirmações sobre os conservadores,
que perderam o poder depois
de 18 anos. Muita gente não
aguentava mais aquele tom do
dono da verdade, que ostentava com a mesma frequência
com que usava o bronzeador
artificial.
Os relatos dos jornalistas que
comeram os salgadinhos e tomaram refrescos do partido,
na noite da derrota são cruéis.
Um deles afirma que a apuração fez os conservadores atravessarem três etapas diferentes. Na primeira delas, quando
os números apenas se esboçavam, alguém aparecia na sala
e dizia: fulano vai mal. Fulano
era um dos seis ministros que
estavam para perder as eleições. Essa fase foi a do hospital. Logo em seguida veio a fase do morgue, quando os cadáveres políticos foram se empilhando nos quadros de apuração.
Finalmente, veio a fase do
monumento, quando começaram a dar o balanço de "como
foram importantes os seus 18
anos de governo, como ficarão
marcados para sempre na história da Inglaterra".
Num livro em que analisa o
futuro de uma política radical
na Inglaterra, Anthony Giddens afirma que os liberais são
parecidos com os revolucionários de esquerda pelo menos
em um aspecto. Partilham da
idéia de que têm uma solução
para os problemas do país, baseiam-se em convicções econômicas bem definidas e estão
dispostos a arrastar tudo que
se opõem a eles. Sentem-se como os responsáveis pela própria marcha da história e os
oponentes, bem esses não passam de retrógrados que precisam ser afastados do caminho.
Essa sensação de ser o detentor do rumo da história dá aos
liberais e deu aos revolucionários de esquerda a força que
precisavam para seguir adiante, uma sólida racionalização
para suportar os gritos dos que
eram atropelados pelo irresistível avanço do trator do progresso.
Sentir-se o timoneiro da Inglaterra no fim do século,
achar-se à frente do seu tempo,
governando e sendo admirado
pelo povo, é um grande consolo até para quem perdeu um
império. O problema é acreditar nisso tudo e sofrer a maior
derrota eleitoral do século 20.
O tamanho da queda poderá
levar os conservadores a entender a arrogância ou pelo
menos achar uma fórmula para evitá-la. Nenhum país suporta facilmente a idéia de que
um grupo, e somente esse grupo de luminares, possa conduzi-lo para o século 21. Todas as
chantagens jogando com a hipótese de um caos econômico
também fracassaram.
Eles deixaram o governo,
usando seu terno de risca de
giz, com a pele bronzeada e o
caos que profetizaram não
apareceu no horizonte, nem se
anunciou para um futuro próximo. Simplesmente, o país ficou mais otimista e a própria
Londres está swingando de novo, como nos áureos anos 60. O
que eles chamam de fator alto
astral ("feel good") está presente nas ruas.
Por isso, achei que havia um
paralelo entre a queda do Muro de Berlim e a derrota conservadora na Inglaterra. Duas
experiências que se achavam
insuperáveis desapareceram
no espaço de um dia.
O fim da história? Bem, o fim
da história não era para agora. Os que pensaram apenas
em administrar um presente
imutável foram tragados pelo
futuro. Major era chamado de
Honest John, um homem atento para a tática, mas incapaz
de enxergar alguns palmos
adiante do nariz. Era como se
os conservadores vivessem
num fogo permanente e não
conseguissem ver a montanha
com a qual colidiriam no 1º de
Maio.
Com as rápidas apurações
modernas, a noite eleitoral é
um fenômeno extraordinário:
passa-se rápido do hospital ao
morgue, do morgue ao monumento, e, quando menos nos
damos conta, já estão lá os
pombos, fazendo cocô nas nossas arrogantes cabeças de
bronze.
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