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Versão integral dá nova vida a Robinson Crusoe
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O herói do capitalismo e do
individualismo puritano
volta à cena em edição que, diante
das versões "integrais" que se oferecem, vale o dinheiro investido
(leia abaixo). Estamos falando,
claro, de "Robinson Crusoe".
O marinheiro de York foi homenageado por J.M. Coetzee, em
conferência que o escritor sul-africano fez no ano passado por
ocasião do recebimento do Nobel
de Literatura. Diante de 500 pessoas em Estocolmo, leu um texto
supostamente escrito por Robinson Crusoe, no qual o marinheiro
informa receber notícias de Daniel Defoe (1660-1731), na realidade, o criador da criatura.
A autonomia do personagem
tem sua razão de ser. O crítico inglês Ian Watt o compara a Fausto
e a dom Quixote, ou seja, diz que
ele é um "grande mito da civilização ocidental". Segundo o autor
de "A Ascensão do Romance",
Robinson Crusoe é o primeiro herói a dar vida a um forte anseio do
homem moderno: "a absoluta liberdade econômica, social e intelectual do indivíduo".
A obra de Daniel Defoe às vezes
é vista erroneamente apenas como um livro de aventuras. Se ficasse nisso, não se lhe justificariam a originalidade nem o fato
de seu autor ser, com ela, comumente considerado o primeiro romancista inglês.
A verdade é que Robinson não
se lança à aventura pela aventura,
mas em busca do lucro. É herdeiro dos relatos de conquistadores
europeus, que, nos séculos 16 e 17,
com a ajuda da matéria-prima arrancada às colônias e do tráfico
negreiro, ajudaram a consolidar o
progresso do comércio.
Por isso muitos estudiosos afirmam que o personagem é a corporificação do "homo economicus". Para Watt, ele também representa o surgimento do homem
comum, que, a despeito dos conselhos paternos e do perigo, procura subir na vida.
Hoje em dia, essas questões parecem favas contadas, mas, à época, o livro representou uma revolução, em face dos valores aristocráticos: em vez do sublime, o
prosaico; em vez do privilégio, o
trabalho; em vez da nobreza, os
sentimentos democráticos; em
vez das normas clássicas, a profusão do realismo.
Algumas atitudes do herói também podem nos parecer frias e
calculistas, se não cruéis. Ele mata
animais por diversão, pensa em
afogar um menino mouro e, depois de o rapaz tê-lo ajudado a escapar do cativeiro e lhe servido
com afeto, vende-o (com certa hesitação) a um navegador português, por 60 moedas.
Aliás, o que muita gente também esquece é que o naufrágio de
Robinson -que foi durante quase quatro anos senhor de engenho
na Bahia, chegou a naturalizar-se
brasileiro e trocou temporariamente a fé calvinista pela religião
"papista"- ocorreu quando ele
partiu do Brasil rumo à Guiné, para comercializar escravos negros.
A real emoção do personagem
se dá quando ele inventaria seus
bens ou quando contabiliza seus
ganhos. Perto desses sentimentos
"capitais", empalidecem a dor pela morte do nativo Sexta-Feira ou
a notícia de seu casamento, "não
para minha desvantagem nem insatisfação". A propósito, o tratamento pouco galante que Defoe
costuma dispensar às mulheres
levou Charles Dickens a conjeturar que o autor era "um tipo bem
insípido e desagradável".
Desagradável ou não, logrou
dotar seu personagem de fraquezas e qualidades nas quais os leitores podiam se espelhar, instaurando na literatura os sentimentos do "laissez-faire" e da ascensão social, plasmados no novo
formato artístico do realismo.
Não é pouca coisa. Chamou a
atenção de Rousseau e de Marx. E
até hoje fascina.
Robinson Crusoe
Autor: Daniel Defoe
Tradutor: Celso M. Paciornik
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (256 págs.)
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