São Paulo, sábado, 12 de junho de 2004

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Versão integral dá nova vida a Robinson Crusoe

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O herói do capitalismo e do individualismo puritano volta à cena em edição que, diante das versões "integrais" que se oferecem, vale o dinheiro investido (leia abaixo). Estamos falando, claro, de "Robinson Crusoe".
O marinheiro de York foi homenageado por J.M. Coetzee, em conferência que o escritor sul-africano fez no ano passado por ocasião do recebimento do Nobel de Literatura. Diante de 500 pessoas em Estocolmo, leu um texto supostamente escrito por Robinson Crusoe, no qual o marinheiro informa receber notícias de Daniel Defoe (1660-1731), na realidade, o criador da criatura.
A autonomia do personagem tem sua razão de ser. O crítico inglês Ian Watt o compara a Fausto e a dom Quixote, ou seja, diz que ele é um "grande mito da civilização ocidental". Segundo o autor de "A Ascensão do Romance", Robinson Crusoe é o primeiro herói a dar vida a um forte anseio do homem moderno: "a absoluta liberdade econômica, social e intelectual do indivíduo".
A obra de Daniel Defoe às vezes é vista erroneamente apenas como um livro de aventuras. Se ficasse nisso, não se lhe justificariam a originalidade nem o fato de seu autor ser, com ela, comumente considerado o primeiro romancista inglês.
A verdade é que Robinson não se lança à aventura pela aventura, mas em busca do lucro. É herdeiro dos relatos de conquistadores europeus, que, nos séculos 16 e 17, com a ajuda da matéria-prima arrancada às colônias e do tráfico negreiro, ajudaram a consolidar o progresso do comércio.
Por isso muitos estudiosos afirmam que o personagem é a corporificação do "homo economicus". Para Watt, ele também representa o surgimento do homem comum, que, a despeito dos conselhos paternos e do perigo, procura subir na vida.
Hoje em dia, essas questões parecem favas contadas, mas, à época, o livro representou uma revolução, em face dos valores aristocráticos: em vez do sublime, o prosaico; em vez do privilégio, o trabalho; em vez da nobreza, os sentimentos democráticos; em vez das normas clássicas, a profusão do realismo.
Algumas atitudes do herói também podem nos parecer frias e calculistas, se não cruéis. Ele mata animais por diversão, pensa em afogar um menino mouro e, depois de o rapaz tê-lo ajudado a escapar do cativeiro e lhe servido com afeto, vende-o (com certa hesitação) a um navegador português, por 60 moedas.
Aliás, o que muita gente também esquece é que o naufrágio de Robinson -que foi durante quase quatro anos senhor de engenho na Bahia, chegou a naturalizar-se brasileiro e trocou temporariamente a fé calvinista pela religião "papista"- ocorreu quando ele partiu do Brasil rumo à Guiné, para comercializar escravos negros.
A real emoção do personagem se dá quando ele inventaria seus bens ou quando contabiliza seus ganhos. Perto desses sentimentos "capitais", empalidecem a dor pela morte do nativo Sexta-Feira ou a notícia de seu casamento, "não para minha desvantagem nem insatisfação". A propósito, o tratamento pouco galante que Defoe costuma dispensar às mulheres levou Charles Dickens a conjeturar que o autor era "um tipo bem insípido e desagradável".
Desagradável ou não, logrou dotar seu personagem de fraquezas e qualidades nas quais os leitores podiam se espelhar, instaurando na literatura os sentimentos do "laissez-faire" e da ascensão social, plasmados no novo formato artístico do realismo. Não é pouca coisa. Chamou a atenção de Rousseau e de Marx. E até hoje fascina.


Robinson Crusoe
    
Autor: Daniel Defoe
Tradutor: Celso M. Paciornik
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (256 págs.)



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