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FERREIRA GULLAR
Este bicho que pensa...
Heshu Yones, uma menina
de 16 anos, nascida em Londres de família curda muçulmana, por ter se apaixonado por um
jovem libanês contra a vontade
da família, foi assassinada com 11
facadas pelo pai, que ainda lhe
cortou a garganta. Esse crime
brutal foi praticado em defesa da
honra, conforme li num jornal. E
li também que Rukhsana Naz, de
19 anos, grávida de sete meses de
seu namorado de infância, foi
morta pelo irmão -estrangulada com um fio de náilon- enquanto a mãe lhe segurava as
pernas para que ela não se debatesse. Em defesa da honra. A mãe,
enquanto ajudava o filho na sua
macabra tarefa, chorava desesperadamente, mas nem por isso desistiu da decisão homicida. Gostaria de não ter que fazer aquilo,
mas não podia deixar de fazê-lo.
Um poder maior que seu amor de
mãe a obrigava. Que poder é esse?
O poder das idéias, dos valores
culturais -sejam eles, religiosos,
morais ou ideológicos- que regem a vida das pessoas. Por isso,
creio não haver exagero em dizer
que o homem, filho da natureza, é
de fato um ser cultural que vive
num mundo por ele inventado.
Fatos como esses deixam-nos
chocados e perplexos, a nos perguntarmos como pode pai ou
mãe trucidarem uma filha que foi
por eles criada com amor e cuidados. Se já nos é difícil aceitar que
uma pessoa mate a qualquer outra, mesmo não tendo com ela nenhum laço afetivo, como então
entender que pais e mães pratiquem tais horrores? A razão desses homicídios é meramente intelectual; no caso, moral. A convicção de que o respeito à família, tal
como eles o concebem, é intocável
leva-os a crer que mais vale matar ou morrer do que viver na desonra. E tal é a sua convicção, o
apego a esses valores, que não hesitam em praticar o pior de todos
os crimes, que é tirar a vida a um
ser humano nascido de sua própria carne e que neles encontrou a
primeira manifestação de afeto.
Mas a convicção das pessoas sobre valores abstratos e idéias não
as conduz sempre à tragédia e ao
crime; pode conduzi-las também
à prática da bondade e da solidariedade. Um exemplo admirável
dessa entrega é o da madre Teresa de Calcutá, que, no entanto,
acreditava no mesmo Deus cristão que o implacável Torquemada. Por isso, ao tomá-la como
exemplo, não ignoramos que, à
sua convicção cristã de doar-se
aos desvalidos, juntava-se certamente um grande amor por seus
semelhantes, que era coisa sua. É
que, nos gestos extremos -sejam
de amor ou de crueldade-, pesam sem dúvida também as características do indivíduo, que
tende a levar suas convicções às
últimas conseqüências, para o
bem ou para o mal.
Os exemplos citados são expressão de concepções ético-religiosas
fundadas em tradições seculares.
Há casos, porém, ainda mais surpreendentes desse poder das
idéias, pois não contam como lastro da tradição. Lembram-se da
seita conhecida como Heaven's
Gate, que afirmava ser o nosso
corpo apenas um momento de
passagem para o "supra-real"?
Pois é. O profeta dessa tal seita
juntou à sua volta dezenas de
adeptos que foram todos viver
numa casa na Califórnia, preparando-se espiritualmente para
um dia passar desta para melhor,
ou seja, para o paraíso. E esse dia
chegou: deitaram-se todos em
suas camas e tomaram uma droga em dose suficiente para morrer. Mais tarde, quando a polícia
descobriu o que havia ocorrido,
encontrou fitas de vídeo em que
muitos deles se despediam deste
mundo. Uma dessas fitas mostrava uma mocinha que se dirigia,
sorridente, a seus pais: "Fiquem
felizes por mim, pois estou a caminho do paraíso". Todos eles
acreditavam que uma nave espacial os levaria ao mundo ideal.
Se aquela mocinha chegou ou
não chegou ao paraíso, é impossível afirmar. De qualquer modo,
impressiona-me esse poder que
têm as idéias sobre a mente das
pessoas, levando-as a se transportarem para um mundo imaginário, sem qualquer apoio na experiência objetiva e que, não obstante, para elas, é mais real do
que a realidade.
Esses são casos extremos. Mas
não resta dúvida de que, desde
que surgiu neste planeta, o homem começou, tanto material como espiritualmente, a inventar o
seu próprio mundo. Como nasceu
incompleto -ao contrário do bisão ou do tigre-, teve que inventar a faca de sílex, o arco e a flecha
para caçar e sobreviver. E também começou -ao contrário dos
outros animais- a se perguntar
por que existia e quem criara tudo aquilo que via em seu redor.
De certo modo, a mesma pergunta que seria formulada pela cosmogonia do século 20: "Por que
existe algo em vez de nada?". A
verdade é que, do homo sapiens
aos gregos, dos gregos aos filósofos
modernos, o homem veio tecendo
e entretecendo mitos, crenças e filosofias em função dos quais ele
vive. Mas a verdade é que, de todas as idéias que o homem inventa, só se mantêm as que melhor se
ajustam às suas necessidades e às
condições do real. A propósito,
lembro-me de um operário que,
estudando comigo na Escola do
Partido, em Moscou, aprendeu
que, segundo o filósofo George
Berkeley, o mundo material não
existia.
- É que ele nunca manejou um
torno mecânico- comentou o
rapaz. Qualquer vacilo e a ferramenta decepava o dedo dele.
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