São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 2006

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NELSON ASCHER

Trinta anos depois


Três décadas, três decênios ou seis lustros atrás, publiquei, pela primeira vez, um artigo

Há 30 anos (três décadas? três decênios, seis lustros? não, sinônimo nenhum maquia, misericordioso, a cronologia nua e crua) publiquei, pela primeira vez, um artigo. Mal havia entrado (ou entrado mal) na universidade e, convertidos em ameaçadores veteranos, antigos colegas de escola resolveram me convocar para encher uma página em branco do jornal do Centro Acadêmico. Todos, então, queriam falar sobre política, enquanto eu concordara em dar à publicação um ar mais sério (ou, pelo menos, um aspecto mais variado) com alguma amenidade literária.
Embora não recorde como era o texto (nem o vi mais), lembro que a tarefa não me parecia demasiado penosa. Tratava-se apenas de compor algo similar a uma redação (algo, aliás, que, recém-introduzido no vestibular, baixara minha média final, e isto não por ter sido uma composição ousada, de vanguarda, além da compreensão dos examinadores, mas porque era ruim mesmo). Podendo escolher o tema, optei pelo meu escritor favorito: Jorge Luis Borges.
Eu descobrira acidentalmente o argentino três anos antes quando, ao acampar com amigos, um levara consigo o último volume (número 50) de uma coleção de clássicos da literatura universal que os pais dele haviam adquirido.
Abrindo a caixa às pressas, ele pegou o livro de cima: "Ficções". Após terminar os meus, ataquei avidamente os alheios. Lendo Borges na adolescência, sem me preparar por meio do estudo dos estruturalistas franceses, dos mais avançados críticos e mais profundos hermeneutas, não me ocorreu notar que estava diante de um monstro sagrado, considerado complexíssimo e impenetrável. Li-o e me diverti. Inocentemente.
Em seguida, parti em busca de suas demais obras e, como a maioria não fora traduzida para o português, comprei-as em espanhol e inglês, línguas que exigiam e também recompensavam meu esforço suplementar. Tampouco tomara conhecimento de que o autor andava envolvido em polêmicas políticas, e nada em seus contos o indicava.
Demorou para que eu entendesse que, em tempos politizados como aqueles, escrever apoliticamente era, por definição, criminosamente "alienado".
Bom, lá fui eu, disposto a convidar meus eventuais milhares de leitores aos prazeres oferecido pelo escritor. Até onde chega minha memória, enfatizei-os apontando (não nessas palavras) tanto o caráter lúdico de suas narrativas quanto a inventividade que um cego era capaz de mostrar, malgrado vivesse dentro de sua biblioteca, cercado, sobretudo, pela memória de tomos previamente lidos. Foi o que bastou.
Nem sequer tive tempo de desfrutar a satisfação de examinar minhas mal-traçadas devidamente compostas (com meus erros e os da revisão) numa página impressa, satisfação esta que, antes de aparecer o processador de texto, estava reservada para poucos.
Pois, há seis lustros (três decênios etc.), isso era tão raro, tão pouco acessível a qualquer mortal, quanto para um não-artista seria, quando inexistiam filmadoras digitais baratas, ver-se na telinha ou na telona. O jornal acabara de sair do forno e meus colegas (militantes, informados e organizados) já me olhavam obliquamente, de longe, como se eu fosse radiativo.
A seus olhos, independentemente de minhas posições de esquerda (como as de quase todo mundo num ambiente e idade semelhantes), eu me tornara suspeito, perigoso, quem sabe um agente do "lado escuro da força". E, não obstante outros, generosos e compreensivos, explicarem-me pacientemente que Borges recebera uma medalha qualquer do ditador chileno e coisa e tal, que um intelectual não podia se dar ao luxo de ser neutro ou de se ausentar da batalha final pela libertação da humanidade, pela redenção do ser humano, pela anistia ampla, geral e irrestrita, por salários mais altos para os faxineiros do Centro Acadêmico e pela distribuição gratuita de jujuba para todos, eu, ainda assim, continuava achando excelentes os seus contos.
De minha parte, persuadi-los a deixar às vezes de lado ou relativizar um pouco seu "compromisso com a revolução" foi um exercício igualmente malsucedido. E, convenhamos, com tantos títulos na fila de espera, qualquer desculpa para não ler alguns era boa. Minha impressão, 30 anos (três décadas etc.) mais tarde e inumeráveis (por preguiça de contá-los) artigos depois, é a de que, desde então, nada de significativo se alterou. Com sorte, no entanto, posso estar enganado.


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