São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2008

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NINA HORTA

Assunto para cadernos inteiros

O que aconteceria na fila do açougue se estivessem todos nus, só com o corpinho que Deus nos deu?

HÁ ALGUM tempo, com a nova diagramação do jornal, perdi espaço, que antes era variável. Acostumada há 20 anos com o número anterior de toques, teimosa como uma mula, não achei mais o tom, só por sorte, e continuo num trabalho de Sísifo a tentar espremer a crônica antiga no tamanho atual.
Acontece que o resultado não me agrada nada, arranco pedaços (aliás, um ótimo exercício), mas caem as anedotas mais interessantes em prol da informação nua e crua.
Não posso fazer uma novelinha, por exemplo, escrevendo sobre o mesmo assunto durante um mês.
Até posso, mas em cada nova crônica teria que resumir as anteriores para o leitor não tão fiel.
Por exemplo, no caso da crônica das baleias, ou melhor na menção ao livro "Moby Dick", que deu tanto pano para manga, mandei encomendar uns 15 volumes na Amazon sobre mulheres de pescadores de baleia, sua vida em terra, sua vida nos mares (pois é, algumas iam junto!).
Enfim, uma riqueza de assunto entalada no meu pescoço.
E com os livros ainda fechados, na cabeceira, já tenho que mudar para "As possibilidades da ervilha torta", deixando para trás aquele rio de informações inúteis e interessantes e de bom tamanho, como soem ser os assuntos de baleias em Nantucket no século atrasado.
Sem contar que, ao ficarmos mais velhos no mesmo assunto, vamos nos tornando mais sabidos e mais sérios, o que pode conduzir à chatice absoluta.
Os amigos me sugerem um blog desentupidor de informações. Não me agrada essa idéia trabalhosa de aproveitamento de sobras. O que vou fazer, com a ajuda do leitor tão amigo, é não forçar a barra dos assuntos, tentando que caibam onde não cabem. Vou tentar falar bonito sobre o nada, ou quase nada.
Tudo isso não é culpa do jornal, é culpa minha, da minha prolixidade nada educada.
Na semana passada, por exemplo, estive na conferência sobre crítica e críticos gastronômicos. Comecei a escrever e, quando vi, tinha ultrapassado 8.000 caracteres dos meus 3.600 permitidos. E ainda faltava tudo. É assunto para um caderno inteiro!
O que deveria ter feito em vez de condensar toda a fala do homem?
Comentar as reações dos assistentes (que caberiam num dedal?), ou somente descrever a jaqueta de cobra-onça do crítico basco, seu audacioso sapato Prada tricolor dégradé?
Daí só me perguntaria quão anônimo pode ser um crítico vestido nesta fatiota. E, talvez, imaginar um garçom fingindo pegar um guardanapo no chão para observar os célebres sapatos que confirmariam serem aqueles os pés do independente e afamado criador e destruidor de reputações. Ainda ali, ele, o garçom, faria um sinal para o cozinheiro, que largaria absolutamente tudo para impressionar o visitante, servindo-lhe o que de melhor havia no restaurante, enganando o crítico, que, por sua vez, nos enganaria, dando os pontos máximos ao safado mestre-cuca.
E, além de tudo, a crônica, como gênero, não se propõe a ser séria e relatar fatos. Pode enveredar para o humor de Cortázar e inventar um susto do garçom, que "sottomesa" vê os pés do crítico, sempre em Prada, mas num salto 15 feminino de fazer inveja a Carrie com seus Manolo Blahnik e uma meia três-quartos segura por liga.
O que poderia nos levar de novo à importância da roupa na gastronomia. Muitas vezes me interrogo o que aconteceria na fila do açougue se estivessem todos nus, somente com o corpinho que Deus nos deu. Quem receberia a picanha mais macia? A melhor parte do boi? Os bifes de primeira? O sorriso mais servil?
Não, não cabe, fica para outra vez.
Hoje só as justificativas e o pedido de perdão pelas últimas, condensadíssimas, matérias.


ninahorta@uol.com.br

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