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São Paulo, sábado, 12 de julho de 2003

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"O CAÇADOR DE SONHOS E OUTROS CONTOS DA CRIAÇÃO"

Livro infanto-juvenil do poeta trata da origem dos seres

Ted Hughes escreve sobre a gênese divina

CRÍTICO DA FOLHA

Ted Hughes (1930-98) é mais conhecido como poeta. Muitos o consideram o grande bardo inglês do século 20, o que talvez seja um exagero. Ele também é lembrado por seu trágico casamento com Sylvia Plath. Alguns crêem que foi o responsável pelo suicídio da escritora, o que é igualmente discutível. Entre o horto de Polínia e o de Tânatos, porém, Hughes cultivou um terreno mais discreto -o da literatura infanto-juvenil, tanto em verso quanto em prosa.
Um bom exemplo dessa seara é "O Caçador de Sonhos e Outros Contos da Criação", relatos em prosa sobre, como o título indica, a gênese divina. O Deus de Hughes é bastante peculiar. Irônico, temperamental, matreiro, Ele trabalha numa oficina forjando com o barro e na fornalha todas as coisas do mundo. Deus é um artífice não só por ser criador, mas sobretudo por ser operário do cosmo em construção.
Seus auxiliares são os anjos, mas também os demônios. Os primeiros elaboram a parte de dentro das coisas. Os segundos, a de fora. É claro que os demônios dão um bocado de trabalho ao Mestre. O demônio Goku moldou a cabeça do Homem num nabo. Deus deu-lhe uma mulher, Goka, mas os dois continuaram a aprontar com a Criação. Em castigo, Ele os fundiu num só pequeno ovo, que entregou ao pardal. Do ovo nasceu o cuco, que desde então põe seus ovos em ninhos alheios.
Como esse conto, outros também descrevem a origem de animais. A criação do morcego é das mais inventivas. O quiróptero teria surgido de uma bolota de cera do ouvido de Deus, moldada por um Poltergeist invisível. Temos ainda notícia do nascimento do ganso, da formiga, do lobo e do cão. As especificidades físicas e comportamentais desses seres costumam decorrer de acidentes de percurso, de desvios ocorridos durante o processo de formação.
Ao contrário de uma criação serena e segura, o que vemos nessas histórias é uma atividade instável e laboriosa, que se faz por meio de tentativa e erro. Artesão incansável, embora falível, Deus rejubila-se com a obra bem acabada. Mas, mesmo quando ela não sai a contento, o processo parece justificar o resultado, pois é durante a fatura que a magia do imponderável atua, dando às coisas um significado novo e mais belo.
Assim o cuco não é aqui só pássaro oportunista. O relato de sua origem sugere um simbolismo demoníaco que transfigura a idéia ordinária que temos do pássaro. O Deus de Hughes é, no fundo, um poeta, construindo um mundo com suas formas sonhadas, produzindo novos sentidos com seu sopro inventivo. Para Hughes, a criação é também poema. (MARCELO PEN)


O Caçador de Sonhos e Outros Contos da Criação   
Autor: Ted Hughes
Tradutor: Sérgio Alcides
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (182 págs.)



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