São Paulo, quinta-feira, 12 de julho de 2007

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Arqueologia do doce

Doceiras, chefs e pesquisadores recuperam receitas tradicionais cada vez mais raras

VERENA FORNETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Alfenim, broa de pau-a-pique, doce de limão-capeta e doce mamão em flor. Muitas receitas tradicionais de doces e quitandas, nome regional para a pâtisserie caseira, estão à beira da extinção... No entanto, pesquisadores e doceiras espalhados pelo país têm se dedicado à preservação da memória de sabores que estão prestes a desaparecer.
"As receitas de compotas levavam dias para serem feitas: limpar as frutas, aferventar e trocar a água antes de cozinhar na calda. Hoje, as mulheres trabalham ou acumulam atividades, não há mais cozinheiras à moda antiga", diz a socióloga Mônica Chaves Abdala, que coordenou uma pesquisa para recuperar receitas da região do Alto Paranaíba (MG).
Com a historiadora Maria Clara Tomaz Machado, Mônica e uma equipe de estudiosos da Universidade Federal de Uberlândia percorreram fazendas e festas regionais. O trabalho será publicado pela Editora da Universidade de Uberlândia em parceria com o Sesc.
"Muitas moças não querem saber de aprender essas tradições demoradas e trabalhosas. Entrevistei doceiras que não tinham para quem passar o conhecimento", conta Mônica.
O grupo encontrou broas de massa de queijo, geléias de mocotó e um bolo chamado fatias de amendoim, com pedaços envolvidos em açúcar e canela.
Os tempos também mudaram os ingredientes usados. Cajuzinho-do-campo, uma fruta típica do cerrado, pêssego verde, murici e jenipapo são raros hoje em dia, mas sobrevivem por causa das doceiras de origem rural que continuam fazendo seus doces.
A cozinheira Cidinha Santiago, que hoje tem uma empresa de eventos em São Paulo, nasceu em Juiz de Fora (MG) e lembra que sua mãe cultivava a "ciência do doce", como ela diz.
Todos os meses, nos aniversários de criança, a mãe reunia as mulheres da vizinhança para mexer as panelas e preparar uma mesa cheia de compotas e guloseimas. "Tento recuperar as receitas, mas em São Paulo é difícil. Não dá tempo", diz ela, que preparou o doce de laranja-da-terra com rapadura e a broa de pau-a-pique para a Folha.
Antigamente, os segredos das iguarias eram contados em cadernos de receitas que passavam de mãe para filha. Quando uma moça se casava, com o enxoval, recebia o caderno.

Doce do Divino
Em Goiás, o folclorista Waldomiro Bariani Ortêncio, 83, reuniu 1.250 receitas da culinária do Estado no livro "A Cozinha Goiana", que será relançado em outubro pela editora Kelps em uma edição comemorativa pelo aniversário de Goiânia. A obra estampa páginas dos cadernos culinários passados de geração em geração.
Na obra, o folclorista mostra a receita do alfenim, doce feito com açúcar e água, que produz uma pasta puxa-puxa modelada ainda quente na forma de flores, animais e objetos. O alfenim tem influência árabe e foi trazido ao Brasil pelos portugueses. É servido principalmente nas festas do Divino Espírito Santo.
A dona de restaurante Telma Machado, da Fazenda Babilônia, em Pirenópolis (GO), também pesquisou as receitas antigas da sua região. Ela recebe turistas para um café colonial na fazenda, que antigamente era um engenho de açúcar.
No restaurante, Telma rala mandioca e assa suas quitandas no forno a lenha. Seu bolo de fubá de arroz demora seis dias para ficar pronto. O arroz fica de molho por três dias até azedar e assumir as características de um fermento. Os grãos passam por uma peneira de arame e são socados no pilão.
Assim se faz o pó de arroz, usado antigamente pelas mulheres para cobrir o rosto. Depois, o ingrediente é embebido em coalhada e descansa por mais três dias. Ovos, manteiga, açúcar, queijo curado e erva-doce completam a receita.
"Antigamente, a comida era lenta. Hoje todos fazem fast food, e eu, slow food", brinca.

Preconceito
Beth Beltrão, do restaurante Viradas do Largo, em Tiradentes (MG), afirma que existe certo preconceito com alguns pratos. "Limão é um ingrediente a que não dão importância", diz a chef, que incluiu o doce de limão-capeta em seu cardápio.
Beth conta que o doce de pau de mamão, feito com raspas do tronco do mamoeiro, açúcar, cravo e canela, ainda sobrevive em algumas fazendas da região, mas já não desperta o mesmo interesse. "Se você diz que é um doce feito com pau de mamão, vão dizer que não tem cabimento, que parece comida que se dá para porco. Mas é um doce maravilhoso", afirma.
A doceira mineira Maria José de Lima Freitas busca adaptar os doces que aprendeu com a mãe e a avó para algo mais próximo do que as pessoas estão acostumadas. "Aquilo que estava se perdendo, que era antigo, virou moderno na minha mão."


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