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Arqueologia do doce
Doceiras, chefs e pesquisadores recuperam receitas tradicionais cada vez mais raras
VERENA FORNETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Alfenim, broa de pau-a-pique, doce de limão-capeta e doce mamão em flor. Muitas receitas tradicionais de doces e
quitandas, nome regional para
a pâtisserie caseira, estão à beira da extinção... No entanto,
pesquisadores e doceiras espalhados pelo país têm se dedicado à preservação da memória
de sabores que estão prestes a
desaparecer.
"As receitas de compotas levavam dias para serem feitas:
limpar as frutas, aferventar e
trocar a água antes de cozinhar
na calda. Hoje, as mulheres trabalham ou acumulam atividades, não há mais cozinheiras à
moda antiga", diz a socióloga
Mônica Chaves Abdala, que
coordenou uma pesquisa para
recuperar receitas da região do
Alto Paranaíba (MG).
Com a historiadora Maria
Clara Tomaz Machado, Mônica
e uma equipe de estudiosos da
Universidade Federal de Uberlândia percorreram fazendas e
festas regionais. O trabalho será publicado pela Editora da
Universidade de Uberlândia
em parceria com o Sesc.
"Muitas moças não querem
saber de aprender essas tradições demoradas e trabalhosas.
Entrevistei doceiras que não tinham para quem passar o conhecimento", conta Mônica.
O grupo encontrou broas de
massa de queijo, geléias de mocotó e um bolo chamado fatias
de amendoim, com pedaços envolvidos em açúcar e canela.
Os tempos também mudaram os ingredientes usados.
Cajuzinho-do-campo, uma fruta típica do cerrado, pêssego
verde, murici e jenipapo são raros hoje em dia, mas sobrevivem por causa das doceiras de
origem rural que continuam fazendo seus doces.
A cozinheira Cidinha Santiago, que hoje tem uma empresa
de eventos em São Paulo, nasceu em Juiz de Fora (MG) e
lembra que sua mãe cultivava a
"ciência do doce", como ela diz.
Todos os meses, nos aniversários de criança, a mãe reunia
as mulheres da vizinhança para
mexer as panelas e preparar
uma mesa cheia de compotas e
guloseimas. "Tento recuperar
as receitas, mas em São Paulo é
difícil. Não dá tempo", diz ela,
que preparou o doce de laranja-da-terra com rapadura e a broa
de pau-a-pique para a Folha.
Antigamente, os segredos
das iguarias eram contados em
cadernos de receitas que passavam de mãe para filha. Quando
uma moça se casava, com o enxoval, recebia o caderno.
Doce do Divino
Em Goiás, o folclorista Waldomiro Bariani Ortêncio, 83,
reuniu 1.250 receitas da culinária do Estado no livro "A Cozinha Goiana", que será relançado em outubro pela editora
Kelps em uma edição comemorativa pelo aniversário de Goiânia. A obra estampa páginas
dos cadernos culinários passados de geração em geração.
Na obra, o folclorista mostra
a receita do alfenim, doce feito
com açúcar e água, que produz
uma pasta puxa-puxa modelada ainda quente na forma de
flores, animais e objetos. O alfenim tem influência árabe e foi
trazido ao Brasil pelos portugueses. É servido principalmente nas festas do Divino Espírito Santo.
A dona de restaurante Telma
Machado, da Fazenda Babilônia, em Pirenópolis (GO), também pesquisou as receitas antigas da sua região. Ela recebe turistas para um café colonial na
fazenda, que antigamente era
um engenho de açúcar.
No restaurante, Telma rala
mandioca e assa suas quitandas
no forno a lenha. Seu bolo de
fubá de arroz demora seis dias
para ficar pronto. O arroz fica
de molho por três dias até azedar e assumir as características
de um fermento. Os grãos passam por uma peneira de arame
e são socados no pilão.
Assim se faz o pó de arroz,
usado antigamente pelas mulheres para cobrir o rosto. Depois, o ingrediente é embebido
em coalhada e descansa por
mais três dias. Ovos, manteiga,
açúcar, queijo curado e erva-doce completam a receita.
"Antigamente, a comida era
lenta. Hoje todos fazem fast
food, e eu, slow food", brinca.
Preconceito
Beth Beltrão, do restaurante
Viradas do Largo, em Tiradentes (MG), afirma que existe certo preconceito com alguns pratos. "Limão é um ingrediente a
que não dão importância", diz a
chef, que incluiu o doce de limão-capeta em seu cardápio.
Beth conta que o doce de pau
de mamão, feito com raspas do
tronco do mamoeiro, açúcar,
cravo e canela, ainda sobrevive
em algumas fazendas da região,
mas já não desperta o mesmo
interesse. "Se você diz que é um
doce feito com pau de mamão,
vão dizer que não tem cabimento, que parece comida que
se dá para porco. Mas é um doce maravilhoso", afirma.
A doceira mineira Maria José
de Lima Freitas busca adaptar
os doces que aprendeu com a
mãe e a avó para algo mais próximo do que as pessoas estão
acostumadas. "Aquilo que estava se perdendo, que era antigo,
virou moderno na minha mão."
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