São Paulo, Quinta-feira, 12 de Agosto de 1999
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Do "padrão Globo" ao "padrão mexicano" de qualidade

GERALD THOMAS
especial para a Folha

Sempre foi assim, não foi? Intelectuais sempre reclamaram, sempre espernearam diante da televisão.
Quando se estabelecia, na década de setenta, a Globo era atacada por todos os lados. A novela brasileira era ridicularizada pela imprensa de esquerda e o canal carioca era acusado de leviandade, esnobismo e populismo. Hoje temos saudade do Boni.
Aliás, muita saudade. O chamado "padrão Globo de qualidade", estabelecido por ele, foi por água abaixo. O que se vê hoje não é somente penoso. O que mais dói é entender a invulnerabilidade da mídia em geral, sua queda vertiginosa em qualidade e a redundância da voz dos formadores de opinião.
Se Boni levava em consideração a crítica em geral e tinha preocupações reais relativas ao nível de sua TV, a atual direção parece ter estacionado seu medidor de qualidade no centro da sociedade mexicana.
Mexicanização, populismos, sexualização e violência excessiva, Ibope, classes D, E, F ou Z, todas essas justificativas para a bestificação da programação de televisão só demonstram que o mesmo povo que já teve a TV como ópio hoje parece ter se tornado o ópio da TV.
Talvez a melhor crítica tenha vindo, camuflada, dos lábios de uma protagonista, no auge do horário nobre. Foi a própria Globo que deu uma rasteira na "intelligentsia", levando ao ar, na última segunda-feira (no mesmo dia em que a TV Cultura tentava promover um debate "sóbrio" sobre o papel da TV na sociedade atual, no "Roda Viva"), um diálogo inacreditavelmente realista e sarcasticamente metalinguístico entre uma empregada negra e uma ex-paquita branca.
Sim, no capítulo de segunda-feira da novela "Suave Veneno", o texto da atriz Mariá da Penha parecia fazer uma autocrítica ácida e severa à própria Globo atual, com sua absoluta e inescrupulosa queda de nível.
Dizia a empregada para a patroa (Leticia Spiller): "Você é cruel e não tem caráter, não se importa com ninguém e só pensa em lucro. Você é exploradora e não se importa com nada além do seu próprio bem-estar".
A verdade é que o "lixo" televisivo sempre esteve de mãos dadas com a demanda do público e as exigências dos patrocinadores. Mas está ficando pior.
Se a programação era confinada a uma grade, temos a certeza de que, lá embaixo, lá no lodo onde sobrevivem e procriam, esses aleijões são bestas incontroláveis e arrebentaram todas as grades que nos protegiam deles.
O problema é que -no passado- havia padrões a serem quebrados, tabus sociais a serem conquistados. Vivemos uma época absolutamente decadente, incrédula, sádica e populista. A referência cultural parece ter estacionado no México, e não há país mais cafona e triste do que aquele país.
A mídia do mundo inteiro baixou seu nível. Não há veículo que tenha se tornado "melhor", ou mais erudito nesses últimos anos, desde a ORF (canal de TV estatal austríaco) ou o jornal diário "Frankfurter Allgemeine Zeitung" até a publicação de livros ou índices de bilheteria de cinema nos Estados Unidos.
Que horror!
Se o profeta Moisés estivesse vivo, passando os seus 40 dias e 40 noites no alto do monte Sinai, talvez seu corpo fosse aproveitado pelas emissoras como uma antena reprodutora.
E não seria de surpreender se ele descesse de lá com um chicote na mão, com sotaque caipira e uma máscara de couro cobrindo o rosto, revelando seus truques e seus dez mandamentos estampados numa tela de cristal líquido, repleto de grifes e merchandising das mais diversas empresas globais.


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