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Do "padrão Globo" ao "padrão mexicano" de qualidade
GERALD THOMAS
especial para a Folha
Sempre foi assim, não foi? Intelectuais sempre reclamaram,
sempre espernearam diante da
televisão.
Quando se estabelecia, na década de setenta, a Globo era atacada por todos os lados. A novela
brasileira era ridicularizada pela
imprensa de esquerda e o canal
carioca era acusado de leviandade, esnobismo e populismo. Hoje temos saudade do Boni.
Aliás, muita saudade. O chamado "padrão Globo de qualidade", estabelecido por ele, foi por
água abaixo. O que se vê hoje não
é somente penoso. O que mais
dói é entender a invulnerabilidade da mídia em geral, sua queda
vertiginosa em qualidade e a redundância da voz dos formadores de opinião.
Se Boni levava em consideração a crítica em geral e tinha
preocupações reais relativas ao
nível de sua TV, a atual direção
parece ter estacionado seu medidor de qualidade no centro da
sociedade mexicana.
Mexicanização, populismos,
sexualização e violência excessiva, Ibope, classes D, E, F ou Z, todas essas justificativas para a bestificação da programação de televisão só demonstram que o mesmo povo que já teve a TV como
ópio hoje parece ter se tornado o
ópio da TV.
Talvez a melhor crítica tenha
vindo, camuflada, dos lábios de
uma protagonista, no auge do
horário nobre. Foi a própria Globo que deu uma rasteira na "intelligentsia", levando ao ar, na última segunda-feira (no mesmo dia
em que a TV Cultura tentava
promover um debate "sóbrio"
sobre o papel da TV na sociedade
atual, no "Roda Viva"), um diálogo inacreditavelmente realista
e sarcasticamente metalinguístico entre uma empregada negra e
uma ex-paquita branca.
Sim, no capítulo de segunda-feira da novela "Suave Veneno",
o texto da atriz Mariá da Penha
parecia fazer uma autocrítica ácida e severa à própria Globo atual,
com sua absoluta e inescrupulosa queda de nível.
Dizia a empregada para a patroa (Leticia Spiller): "Você é
cruel e não tem caráter, não se
importa com ninguém e só pensa
em lucro. Você é exploradora e
não se importa com nada além
do seu próprio bem-estar".
A verdade é que o "lixo" televisivo sempre esteve de mãos dadas com a demanda do público e
as exigências dos patrocinadores. Mas está ficando pior.
Se a programação era confinada a uma grade, temos a certeza
de que, lá embaixo, lá no lodo
onde sobrevivem e procriam, esses aleijões são bestas incontroláveis e arrebentaram todas as grades que nos protegiam deles.
O problema é que -no passado- havia padrões a serem quebrados, tabus sociais a serem
conquistados. Vivemos uma
época absolutamente decadente,
incrédula, sádica e populista. A
referência cultural parece ter estacionado no México, e não há
país mais cafona e triste do que
aquele país.
A mídia do mundo inteiro baixou seu nível. Não há veículo que
tenha se tornado "melhor", ou
mais erudito nesses últimos
anos, desde a ORF (canal de TV
estatal austríaco) ou o jornal diário "Frankfurter Allgemeine Zeitung" até a publicação de livros
ou índices de bilheteria de cinema nos Estados Unidos.
Que horror!
Se o profeta Moisés estivesse
vivo, passando os seus 40 dias e
40 noites no alto do monte Sinai,
talvez seu corpo fosse aproveitado pelas emissoras como uma
antena reprodutora.
E não seria de surpreender se
ele descesse de lá com um chicote
na mão, com sotaque caipira e
uma máscara de couro cobrindo
o rosto, revelando seus truques e
seus dez mandamentos estampados numa tela de cristal líquido, repleto de grifes e merchandising das mais diversas empresas globais.
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