São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998

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“Contos do Mar” é MPB em busca de um território

Lili Martins/Folha Imagem
O violonista, cantor e compositor mineiro Mario Gil, 36, que lança seu segundo disco, "Contos do Mar"


da Reportagem Local

Há músicos que, por sua excelência técnica, acabam por ser apreciados mais por outros músicos que pelo público em geral.
Mario Gil é desses músicos que admiram o virtuosismo de artistas como Dori Caymmi e Edu Lobo -e talvez venha a se tornar, ele próprio, um "músico de músicos".
Acontece que a música que faz -e ainda mais se a faz em parceria com o bom compositor Paulo César Pinheiro, da mesma cepa- não é destinada a derrubar telhados. É simples, muito simples, sem arroubos ou lampejos de gênio.
Não se fala mais, aqui, de estrelato pop. Mario Gil não será estrela, como provavelmente não serão seus pares Renato Braz e Mônica Salmaso. O terreno, aqui, não é o do exibicionismo pop à Warhol.
Ainda assim, um CDzinho obscuro como esse guarda várias chances de desfrute e reflexão.
A mais flagrante diz respeito a esse estranho fenômeno de artistas paulistas -nesse caso, é um mineiro estabelecido em São Paulo- ancorarem-se na água do mar.
Isso reflete, em primeira mão, a desterritorialização que vive a música metropolitana brasileira. Abortada a urbaníssima Lira Paulistana de Arrigo Barnabé, os artistas aqui estabelecidos são compelidos a se debruçar sobre realidades que não são as suas.
Caymmiano, "Contos do Mar" fala de pescadores, sereias, lendas praieiras -nada com que Mario Gil possua real familiaridade.
São Paulo torna-se casa de expatriados -acontece, meio inversamente, com migrantes nordestinos como Chico César, Rita Ribeiro e Zeca Baleiro- que, ainda que membros da urbanidade, não gozam de nenhuma familiaridade artística com ela.
Não fica artificial, embora pudesse. No caso de Mario Gil, a presença carioca de Paulo César Pinheiro vem concorrer para a impressão de conforto.
É o que acontece, afinal. Enquanto Mario se esforça por recuperar a melodia perdida na MPB dos 90, Pinheiro tece redes de metáforas que enchem o amor de água salgada.
O clímax se dá já na segunda faixa, "Anabela" -moça que "com mãos de rodamoinho/ fez o meu barco afundar/ só percebi meu naufrágio/ quando era tarde demais/ vi Anabela partindo/ pra não voltar nunca mais".
Os artefatos são melodia, melancolia, metáfora, narratividade -tudo o que o pop pós-moderno quer abolir.
Bem, os artefatos resistem, mansinhos -na voz de não-cantor (meio Gonzaguinha, meio Djavan) de Mario Gil, na voz de muito cantores de Mônica Salmaso (nas belíssimas "Outro Quilombo" e "Rainha do Mar") e Renato Braz ("Lá"), na melancolia tipo banzo ("Outro Quilombo", em que Mario, após se apropriar do mar que não é seu, se apropria de sentimentos negros que não são seus)...
Relevante se torna perceber que o disco afrouxa quando abandona o mar como tema -é o que acontece em "Essa Moça" e "Flor Ardente", cansadas canções apenas de amor.
A nova MPB navega à procura de uma identidade, ainda que ela seja forjada. (PAS)
˛
Disco: Contos do Mar Artista: Mario Gil Lançamento: Dabliú Quanto: R$ 18, em média


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