São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998

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Banalidade do bem, do mal; "mada daiô"

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Em japonês, significa "ainda não", título da última obra filmada de Akira Kurosawa (1910-1998). Tocante combinação de melancolia e otimismo a respeito de um professor aposentado que em cada aniversário recebe amigos e discípulos para mostrar que está vivo e alerta. "Mada daiô", ainda não, vão ter que esperar, a vida continua.
É a resposta do grande humanista japonês ao espirito niilista, agourento e perverso produzido pela modernidade e pelo cientificismo a pretexto de gerar bem-estar e alargar o tempo de vida.
Na filmografia de Kurosawa há outra preciosidade na mesma linha, "Viver" (Ikiru, 1952). Alguns críticos a descartam como melodramática justamente porque são modernos e científicos, mas é uma comovente convocação à vida, recusa à capitulação. Despertar de um funcionário público, apagado e resignado, que ao descobrir que está com câncer resolve fazer tudo o que dele se esperava ao longo da inútil existência.
Humanismo hoje é disfarce e desculpa para uma série de atitudes nada humanistas. A violência e o rancor, mesmo quando mitificados pelos fins, são anti-humanistas.
O clericalismo -religioso, político, intelectual- contrapõe- se à valorização do espírito. O nivelamento por baixo e a minimização dos padrões de exigência moral ou cultural aniquilam qualquer tentativa de produzir elevação e grandeza no ser humano.
O frenesi novidadeiro com o seu inevitável subproduto -a mentalidade da "tabula rasa"- representam o inverso do progresso porque colocam o engenho humano a serviço da destruição do seu acervo, quando, na realidade, a grandeza da aventura existencial consiste justamente na preservação e acúmulo de conquistas.
Banalizou-se o humanismo porque a banalidade é a essência dessa civilização de estridências uníssonas para a qual o jornalismo contemporâneo tanto contribui.
Há um par de semanas chamou-me a atenção o belo título de um editorial do "Jornal do Brasil" (28/8/98), "Banalidade do Bem". Escrito, evidentemente, por alguém que conhecia a expressão de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal criada quando a humanista germano-americana acompanhou em Jerusalém as revelações sobre o Holocausto durante o julgamento de Adolph Eichmann.
Os jornais brasileiros de hoje já não se apegam aos arrazoados solenes e anônimos que marcaram nossa história política. Foram suplantados pelo conjunto de artigos e colunas personalizadas.
Sobraram o editorialista e o verbo editorializar, opinar, mas editorial passou de substantivo para adjetivo, designando tudo o que é relativo à edição. Em outras paragens persiste o ressoar dos solilóquios de órgãos de imprensa que se assumem como instituições e não como empresas.
A peça em questão comentava a perversão das sondagens eleitorais em São Paulo, onde a administração austera, honesta e eficaz de Mário Covas não conseguia despertar entusiasmo (o quadro, segundo o Datafolha, começa a alterar-se).
Condenava "o carisma das promessas vãs, das obras espalhafatosas, da benemerência mafiosa e do paternalismo anacrônico" que esmagam os critérios de avaliação da boa administração e da probidade pessoal.
A cobertura das comemorações do 166º aniversário de nossa emancipação política deram-me outro exemplo sobre a banalidade do bem. A partir de 1995 o governo resolveu acrescentar a questão dos direitos humanos à conotação de Pátria e Liberdade impregnada na data.
Assisti à bela cerimônia nos jardins do Alvorada, em Brasília, onde o presidente da República diante de boa parte do ministério assinou importantes atos no campo dos direitos civis e humanos.
Foram demarcadas as terras de diversas tribos indígenas, assentados os descendentes dos escravos em seus antigos quilombos e, sobretudo, anistiados os imigrantes que aqui viviam sem autorização.
No exato momento em que a crise financeira mundial enrijece almas e fronteiras de países como os EUA, França, Alemanha, Espanha e Itália, fazendo com que virem as costas aos desesperados que buscam abrigo, o Brasil caminha em direção oposta, tirando da condição de párias cerca de 100 mil refugiados que nos procuraram tangidos por problemas econômicos ou políticos.
Conjunto de medidas classificadas pelo presidente como "globalização solidária", visão do mundo mais humana e menos materialista num momento onde impera o egoísmo do "salve-se quem puder".
A cobertura desse evento mal apareceu nos telejornais da noite e nos jornais do dia seguinte, ainda fascinados pelo brilho marcial e castrense das tradicionais comemorações da Independência. Nossa mídia não se empolgou com o novo Sete de Setembro de uma sociedade democrática.
Armou-se um axioma em que direitos humanos e direitos civis merecem destaque quando violados. Não interessam quando protegidos ou ampliados. Banalidade do bem é essa generalizada falta de convicção, apetite, fibra ou garra para a lenta e elaborada construção de um mundo melhor.
Banalidade do mal é a mesma letargia em sentido contrário. Descaso com cada caso de dor e sofrimento. Compulsão de esquecer por meio da saturação e da descontinuidade.
O fim-de-semana prolongado produziu cerca de 170 vítimas fatais no Sudeste brasileiro. O desabamento do cinema-templo de Osasco, o incêndio em Araras de dois ônibus de romeiros que voltavam de Aparecida, acidentes na BR-116 e o recorde histórico de homicídios na Grande São Paulo (68), somados, produziram quase tantas mortes quanto as 229 na queda do avião da Swissair no Canadá.
Impossível saber como Deus reagiu ao aniquilamento de tantos devotos. Mais fácil aferir a reação daqueles seres especiais que comandam os corações e mentes dos sobreviventes -nas primeiras páginas dos jornais desta quinta-feira, cinco dias depois de iniciado o ciclo de desgostos, as tragédias anônimas estavam praticamente evaporadas.
Impera o Senhor Mercado, estranha figura, imponderável, onipotente, onisciente e onipresente. Ao contrário do Golem de barro, é uma colagem de cifras, manchetes e terror.
Invisível, consegue ser detectado por algumas mentes privilegiadas: faz declarações, qualifica, age, determina, veta, sanciona. Despreza a opinião dos governantes, oposições, empregados, desempregados, empresários e, sobretudo, economistas.
Seu efeito mais perverso é esconder a figura de Kurosawa repetindo o amável recado -"Mada daiô", ainda não foi desta vez. Estamos aí.



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