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Banalidade do bem, do mal; "mada daiô"
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Em japonês, significa "ainda
não", título da última obra filmada de Akira Kurosawa
(1910-1998). Tocante combinação de melancolia e otimismo a
respeito de um professor aposentado que em cada aniversário recebe amigos e discípulos
para mostrar que está vivo e
alerta. "Mada daiô", ainda
não, vão ter que esperar, a vida
continua.
É a resposta do grande humanista japonês ao espirito niilista, agourento e perverso produzido pela modernidade e pelo
cientificismo a pretexto de gerar bem-estar e alargar o tempo
de vida.
Na filmografia de Kurosawa
há outra preciosidade na mesma linha, "Viver" (Ikiru, 1952).
Alguns críticos a descartam como melodramática justamente
porque são modernos e científicos, mas é uma comovente convocação à vida, recusa à capitulação. Despertar de um funcionário público, apagado e resignado, que ao descobrir que está
com câncer resolve fazer tudo o
que dele se esperava ao longo
da inútil existência.
Humanismo hoje é disfarce e
desculpa para uma série de atitudes nada humanistas. A violência e o rancor, mesmo quando mitificados pelos fins, são
anti-humanistas.
O clericalismo -religioso, político, intelectual- contrapõe-
se à valorização do espírito. O
nivelamento por baixo e a minimização dos padrões de exigência moral ou cultural aniquilam qualquer tentativa de
produzir elevação e grandeza
no ser humano.
O frenesi novidadeiro com o
seu inevitável subproduto -a
mentalidade da "tabula rasa"- representam o inverso do
progresso porque colocam o engenho humano a serviço da
destruição do seu acervo, quando, na realidade, a grandeza da
aventura existencial consiste
justamente na preservação e
acúmulo de conquistas.
Banalizou-se o humanismo
porque a banalidade é a essência dessa civilização de estridências uníssonas para a qual o
jornalismo contemporâneo
tanto contribui.
Há um par de semanas chamou-me a atenção o belo título
de um editorial do "Jornal do
Brasil" (28/8/98), "Banalidade
do Bem". Escrito, evidentemente, por alguém que conhecia a
expressão de Hannah Arendt
sobre a banalidade do mal criada quando a humanista germano-americana acompanhou em
Jerusalém as revelações sobre o
Holocausto durante o julgamento de Adolph Eichmann.
Os jornais brasileiros de hoje
já não se apegam aos arrazoados solenes e anônimos que
marcaram nossa história política. Foram suplantados pelo
conjunto de artigos e colunas
personalizadas.
Sobraram o editorialista e o
verbo editorializar, opinar, mas
editorial passou de substantivo
para adjetivo, designando tudo
o que é relativo à edição. Em
outras paragens persiste o ressoar dos solilóquios de órgãos
de imprensa que se assumem
como instituições e não como
empresas.
A peça em questão comentava
a perversão das sondagens eleitorais em São Paulo, onde a administração austera, honesta e
eficaz de Mário Covas não conseguia despertar entusiasmo (o
quadro, segundo o Datafolha,
começa a alterar-se).
Condenava "o carisma das
promessas vãs, das obras espalhafatosas, da benemerência
mafiosa e do paternalismo anacrônico" que esmagam os critérios de avaliação da boa administração e da probidade pessoal.
A cobertura das comemorações do 166º aniversário de nossa emancipação política deram-me outro exemplo sobre a
banalidade do bem. A partir de
1995 o governo resolveu acrescentar a questão dos direitos
humanos à conotação de Pátria
e Liberdade impregnada na data.
Assisti à bela cerimônia nos
jardins do Alvorada, em Brasília, onde o presidente da República diante de boa parte do ministério assinou importantes
atos no campo dos direitos civis
e humanos.
Foram demarcadas as terras
de diversas tribos indígenas, assentados os descendentes dos
escravos em seus antigos quilombos e, sobretudo, anistiados
os imigrantes que aqui viviam
sem autorização.
No exato momento em que a
crise financeira mundial enrijece almas e fronteiras de países
como os EUA, França, Alemanha, Espanha e Itália, fazendo
com que virem as costas aos desesperados que buscam abrigo,
o Brasil caminha em direção
oposta, tirando da condição de
párias cerca de 100 mil refugiados que nos procuraram tangidos por problemas econômicos
ou políticos.
Conjunto de medidas classificadas pelo presidente como
"globalização solidária", visão
do mundo mais humana e menos materialista num momento
onde impera o egoísmo do "salve-se quem puder".
A cobertura desse evento mal
apareceu nos telejornais da
noite e nos jornais do dia seguinte, ainda fascinados pelo
brilho marcial e castrense das
tradicionais comemorações da
Independência. Nossa mídia
não se empolgou com o novo
Sete de Setembro de uma sociedade democrática.
Armou-se um axioma em que
direitos humanos e direitos civis merecem destaque quando
violados. Não interessam quando protegidos ou ampliados.
Banalidade do bem é essa generalizada falta de convicção,
apetite, fibra ou garra para a
lenta e elaborada construção de
um mundo melhor.
Banalidade do mal é a mesma
letargia em sentido contrário.
Descaso com cada caso de dor e
sofrimento. Compulsão de esquecer por meio da saturação e
da descontinuidade.
O fim-de-semana prolongado
produziu cerca de 170 vítimas
fatais no Sudeste brasileiro. O
desabamento do cinema-templo de Osasco, o incêndio em
Araras de dois ônibus de romeiros que voltavam de Aparecida,
acidentes na BR-116 e o recorde
histórico de homicídios na
Grande São Paulo (68), somados, produziram quase tantas
mortes quanto as 229 na queda
do avião da Swissair no Canadá.
Impossível saber como Deus
reagiu ao aniquilamento de
tantos devotos. Mais fácil aferir
a reação daqueles seres especiais que comandam os corações e mentes dos sobreviventes
-nas primeiras páginas dos
jornais desta quinta-feira, cinco dias depois de iniciado o ciclo de desgostos, as tragédias
anônimas estavam praticamente evaporadas.
Impera o Senhor Mercado, estranha figura, imponderável,
onipotente, onisciente e onipresente. Ao contrário do Golem de
barro, é uma colagem de cifras,
manchetes e terror.
Invisível, consegue ser detectado por algumas mentes privilegiadas: faz declarações, qualifica, age, determina, veta, sanciona. Despreza a opinião dos
governantes, oposições, empregados, desempregados, empresários e, sobretudo, economistas.
Seu efeito mais perverso é esconder a figura de Kurosawa
repetindo o amável recado
-"Mada daiô", ainda não foi
desta vez. Estamos aí.
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