São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2001

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ARTES PLÁSTICAS

"Porta do Inferno" é pedra angular de Rodin

TIAGO MESQUITA
CRÍTICO DA FOLHA

E ncomendada em 1880, para ser a entrada de um museu de arte decorativa em Paris, "A Porta do Inferno" se tornou pedra angular da produção tardia de Rodin. O artista dedicou anos a fio de sua produção para encontrar a versão última deste relevo, envolvendo a sua produção estatuária em diversos níveis.
Questões já presentes em sua escultura desde a década de 1870, como a liberação formal da obra de um compromisso em representar anatomicamente os corpos e o relaxamento de uma espacialidade predeterminada na escultura neoclássica, são aqui, de um modo ou de outro, condensadas. Porém a obra parece ter fomentado novos campos e angústias nesta produção, sem eliminar as dubiedades do escultor.
A nova exposição de Rodin, inaugurada recentemente na Pinacoteca do Estado, tem a "Porta" como eixo de organização. Junto a uma versão em gesso do relevo, temos esculturas (em mármore, bronze, gesso e barro), aquarelas e desenhos do artista, além de fotografias, que nos oferecem tanto um registro de sua produção quanto um olhar da época sobre seus trabalhos.
Tal organização pretende acompanhar alguns passos que resultaram na obra, detendo-se na "Porta" como um episódio central da produção de Rodin. Tanto nos desdobramentos que levaram a ela como nos que, lateralmente, indicaram novos campos ou saíram de lá para frente.
Nesse período de sua produção, Rodin cristalizava algumas características modernas de seu trabalho, indicadas, segundo o escultor William Tucker, a partir da peça "A Idade do Bronze".
A exposição lança olhos sobre essa modernidade peculiar de Rodin, de uma obra que, apesar de manter vínculos estreitos com uma figuração tradicional, não se curva aos esquemas espaciais neoclássicos. Que ao que tudo indica havia deixado de ser questão e se tornado norma.
Muito generoso com seu meio, o artista parecia buscar a potência libertadora da escultura existente em alguns mestres do Renascimento, no entanto, tal possibilidade não se oferecia no interior da tradição. O artista se questiona sobre o lugar onde residiria tal potência. Esse espírito curioso, de uma obra que vai para diversos lados, às vezes por indecisão, às vezes buscando uma forma diversa, é marcante na montagem.
Nenhum dos trabalhos aparece subordinado àquela obra magna. Surgem como episódios de um trabalho angustiado, de um fazer que procura uma linguagem escultórica desvinculada de uma narrativa pré-figurada.
Dessa maneira, cada ato sobre a argila ou o gesso é singular, muito importante para o escultor francês, que buscava uma manifestação espiritual (a idéia) na brutalidade da pedra. Rodin procura uma certa singularidade do gesto ao moldar seus materiais. A estrutura de seu trabalho deve sair daí, sem forçar a massa a dizer o que ela não é e nem a desfigurando em busca de um movimento que é particular ao corpo humano.
Por isso, na "Porta", o percurso dos corpos é esparso, não seguindo uma trajetória sequencial nem uma linha narrativa. Se parte do fundo opaco, em que as figuras mal se comunicam, o espaço mais permite que os corpos esgarçados se distingam, em uma simultaneidade tensa, do que caminhem rumo a um destino comum.
A mão de Rodin tenta atribuir um outro grau de humanidade ao que molda. Busca retirar a matéria do repouso, seja do disforme, seja de uma inércia de formas predeterminadas, e fazer com que ela se individualize.
Essa vontade leva a uma busca delicada das potencialidades do material que, tateando centímetro por centímetro, lhe encontra a superfície adequada, mas, sobretudo nos mármores, também mostra certa impaciência.
Uma vontade de fazer falar, que, em vez de trazer o material da vigília com serenidade, lhe dá um tranco brusco. A pedra, obrigada a agir com exagero, se perde em suas aspirações. E o curioso é que tudo tão diverso nos surge como múltiplos desdobramentos do mesmo processo. Tal diversidade, cuidadosamente preservada, nos ensina que, na obra de Rodin, essa busca talvez seja tão importante quanto o que ele encontra.


Rodin - A Porta do Inferno    
Onde: Pinacoteca do Estado (pça. da Luz, 2, SP, tel. 0/xx/11/229-9844)
Quando: de ter. a dom., das 9h às 19h; até 9/12
Quanto: entrada franca




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