São Paulo, sexta-feira, 12 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Política pesa em escolha da Academia

NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA

Desde o dia, cem anos atrás, quando, embora gigantes literários como Leon Tolstói, Anton Tchekov, August Strindberg etc. ainda estivessem vivos, uma comissão de suecos pôs, em nome do pai da dinamite, Alfred Nobel, um polpudo cheque nas mãos de um poeta francês cujo nome (Sully Prudhomme) ninguém mais, salvo alguns historiadores, recorda, o prêmio literário em questão tornou-se não apenas o mais prestigioso do planeta como também aquele envolvido pela maior quantidade de especulação e questionamento tanto antes quanto depois de ser concedido.
O que passa pela cabeça dos membros da Academia Sueca é um dos mistérios da vida cultural, mas é difícil ignorar que fatores de ordem política pesam tanto ou mais do que a avaliação estética objetiva e desinteressada.
Não há como não concluir, portanto, que o Nobel de 2001, dado a V.S. Naipaul, estilista impecável e grande romancista que vem desempenhando o papel de mais cáustico analista da realidade pós-colonial e que foi, além disso, o pioneiro da crítica sem concessões ao islamismo militante, está diretamente vinculado à apocalíptica batalha cultural, política e agora militar entre o Ocidente e o Islã que os atentados nos EUA colocaram no centro das preocupações contemporâneas.
Romances como "Os Mímicos" ou o mais ambicioso de todos, "Uma Casa para o Senhor Biswas", obras nas quais, entre outras coisas, ele ataca frontalmente a idéia de que todos os males e achaques das nações do Terceiro Mundo derivam exclusivamente das intenções demoníacas dos colonizadores europeus, haviam rendido a Naipaul a antipatia profunda de toda a esquerda acadêmica e jornalística que insiste em ver nos países "em desenvolvimento" vítimas dotadas exclusivamente de virtudes.
Sua principal opção estética, a de escrever uma ficção realista nos moldes do século 19, conspicuamente avessa à parafernália modernista, contribuiu para que ele fosse caracterizado como um autor conservador em termos de forma e de conteúdo.
Tão ou talvez no momento mais importante do que sua prosa criativa tem sido seu trabalho jornalístico, produto de seu interesse por sua região de origem no Caribe, da exploração das raízes de sua família no subcontinente indiano e de suas viagens pela América Latina, África e Ásia.
Quer se concorde ou discorde de suas opiniões, é difícil pôr em dúvida que Naipaul, seja investigando o peronismo na Argentina, seja explicando as incontáveis e intermináveis guerras civis africanas, é um mestre da grande reportagem histórico-política, um gênero que em suas mãos conquista o estatuto de alta literatura.
Seus dois livros mais relevantes atualmente são "Entre Fiéis" e sua continuação, "Além da Fé". O primeiro resultou da viagem que a vitória da revolução islâmica que levou o aiatolá Ruholah Khomeini ao poder instigou o autor a fazer ao Irã e, em seguida, ao Paquistão, Indonésia e Malásia.
Naipaul resolveu investigar a ascensão (ou retorno?) do islamismo politizado e revolucionário não nos países árabes que haviam dado à luz a religião do profeta, mas naqueles outros nos quais a fé em questão havia violentamente substituído e/ou oprimido as culturas nativas. Suas conclusões, confirmadas e acentuadas pela viagem que gerou o segundo livro, não são absolutamente simpáticas ao islamismo, que ele vê, em todos os planos, como uma das piores e mais cruéis formas de colonialismo e imperialismo.
Como se poderia esperar, essa foi a gota d'água que fez do escritor o alvo de todos os tipos de ataques que o caracterizavam como traidor dos povos oprimidos, bajulador dos ricos e dos imperialistas, conservador, reacionário.
Ironicamente, uma das críticas mais duras às suas posições foi feita, no começo dos anos 80, pelo indiano também radicado na Inglaterra Salman Rushdie, um romancista talvez ainda mais interessante e talentoso, mas que, por assim dizer, precisou ser condenado à morte pelo líder dos fanáticos iranianos antes que suas idéias começassem a perder a ingenuidade, aproximando-se daquelas defendidas por Naipaul.
Trocando em miúdos, o Nobel raramente é um juízo literário ou somente literário (e, nesse quesito específico, habitualmente falha), mas, se os misteriosos escandinavos queriam recomendar uma bibliografia que nos ajudasse a entender o que está acontecendo no mundo, acertaram em cheio.



Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Hemingway é o premiado mais citado
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.