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"NOVE NOITES"
Carvalho vai e vem entre realidade e ficção
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Isto é para quando você
vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo.
Vai entrar numa terra em que a
verdade e a mentira não têm mais
os sentidos que o trouxeram até
aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe
passar pela cabeça. E amanhã, ao
acordar, faça de novo a mesma
pergunta. E depois de amanhã,
mais uma vez. Sempre a mesma
pergunta. E a cada dia receberá
uma resposta diferente."
As primeiras frases do livro do
escritor e colunista da Folha Bernardo Carvalho já produzem uma
impressão desconcertante, que o
autor sabe manter com habilidade ao longo da narrativa. Não sabemos ao certo o que há de ficção
e o que há de realidade, o que é
mentiroso e o que é verdadeiro
nas páginas de "Nove Noites".
Há um fato real, ocorrido em
agosto de 1939: o suicídio do antropólogo americano Buell
Quain, que fazia uma pesquisa de
campo entre os índios krahôs, na
selva brasileira. À primeira vista,
"Nove Noites" é o relato, perfeitamente plausível, das investigações
empreendidas por Bernardo Carvalho para esclarecer o episódio.
O narrador chega a passar alguns dias e noites numa aldeia
krahô, experiência meio cômica,
meio deprimente, que rende páginas memoráveis de escrita autobiográfica. "A maioria dos índios
não falava comigo", diz. "Quando
se aproximavam, era ou para pedir alguma coisa ou porque estavam bêbados. Só as crianças riam
de mim, e as mulheres." Querem
submetê-lo a alguma espécie de
ritual de iniciação; ele resiste, com
medo, asco e mau humor. Não
quer ser "adotado" pela aldeia.
"De volta a São Paulo," continua, "comecei a receber telefonemas a cobrar". Os índios pediam-lhe coisas. "Em geral, dinheiro. Os
pedidos não tinham fim. Agora
eu era o eterno devedor." As frases curtas, testemunhais, vão
acompanhadas de um comentário desalentado. O autor compara-se a um pai relapso, a quem os
filhos não param de pedir a reparação de seus erros passados. Os
índios seriam "os órfãos da civilização". E completa: "Há neles
uma carência irreparável. Não
querem ser esquecidos".
Eis uma frase que se aplica tanto
às expectativas de um filho desprezado pelo pai relapso, quanto
para a situação inversa -a de um
pai que gostaria de deixar ao filho
um legado ou uma memória.
Outras passagens autobiográficas se misturam à narração. O autor rememora os primeiros contatos que teve com índios, quando
ainda era criança. Seu pai comprara terras pelos lados da Ilha do
Bananal, por volta de 1967. É aliás
notável, pela graça e pela discrição, o relato que Bernardo Carvalho faz das aventuras de que era
obrigado a participar a bordo do
monomotor pilotado pelo pai.
Parecemos ter perdido de vista,
a essa altura, o suicídio de Buell
Quain. Mas o livro de Bernardo
Carvalho, um pouco como o
avião de seu pai, vai transitando
com enorme sangue-frio por entre diferentes altitudes, por diversos estratos narrativos. Parece haver muitas camadas possíveis entre o que é pura ficção e o que é
testemunho pessoal.
As relações entre brancos e índios, entre Bernardo Carvalho e o
pai, entre Buell Quain e sua família, e as questões mais amplas da
identidade pessoal, da herança familiar e da pertinência a um grupo vão se espelhando ao longo da
narrativa e terminam, creio, por
elucidar-se mutuamente.
O feito mais notável deste livro é
que esse jogo de ambiguidades e
imbricações não depende de uma
escrita nebulosa e artificial para
funcionar. Mesmo quando o mistério em torno de Buell Quain está
ainda longe de ser resolvido, as
frases de Bernardo Carvalho são
claras, curtas, precisas.
Acompanhamos com interesse
sempre renovado o desenvolvimento das investigações do narrador; ao mesmo tempo, a sua arte está em nos fazer frequentemente inseguros com relação ao
rumo que o livro vai tomando.
"Nove Noites" explora com maestria a sensação de estarmos sendo
traídos, no exato momento em
que parecemos nos aproximar da
raiz, da verdadeira origem, da
fonte de nossas inquietações. Essa
sensação pode ser associada ao tema da paternidade e da memória
individual, mas também à idéia
de Comte, citada por Carvalho,
sobre o governo, o domínio que
os mortos exercem sobre os vivos.
No que é ao mesmo tempo ritual de sepultamento e cerimônia
de exumação, o texto de "Nove
Noites" passa pelos mais diversos
estratos da memória e do imaginário. Seria impertinência discutir se é romance esse vaivém entre
realidade e ficção; merece, isso
sim, o nome de literatura.
Nove Noites
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (170 págs.)
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