São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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"NOVE NOITES"

Carvalho vai e vem entre realidade e ficção

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente."
As primeiras frases do livro do escritor e colunista da Folha Bernardo Carvalho já produzem uma impressão desconcertante, que o autor sabe manter com habilidade ao longo da narrativa. Não sabemos ao certo o que há de ficção e o que há de realidade, o que é mentiroso e o que é verdadeiro nas páginas de "Nove Noites".
Há um fato real, ocorrido em agosto de 1939: o suicídio do antropólogo americano Buell Quain, que fazia uma pesquisa de campo entre os índios krahôs, na selva brasileira. À primeira vista, "Nove Noites" é o relato, perfeitamente plausível, das investigações empreendidas por Bernardo Carvalho para esclarecer o episódio.
O narrador chega a passar alguns dias e noites numa aldeia krahô, experiência meio cômica, meio deprimente, que rende páginas memoráveis de escrita autobiográfica. "A maioria dos índios não falava comigo", diz. "Quando se aproximavam, era ou para pedir alguma coisa ou porque estavam bêbados. Só as crianças riam de mim, e as mulheres." Querem submetê-lo a alguma espécie de ritual de iniciação; ele resiste, com medo, asco e mau humor. Não quer ser "adotado" pela aldeia.
"De volta a São Paulo," continua, "comecei a receber telefonemas a cobrar". Os índios pediam-lhe coisas. "Em geral, dinheiro. Os pedidos não tinham fim. Agora eu era o eterno devedor." As frases curtas, testemunhais, vão acompanhadas de um comentário desalentado. O autor compara-se a um pai relapso, a quem os filhos não param de pedir a reparação de seus erros passados. Os índios seriam "os órfãos da civilização". E completa: "Há neles uma carência irreparável. Não querem ser esquecidos".
Eis uma frase que se aplica tanto às expectativas de um filho desprezado pelo pai relapso, quanto para a situação inversa -a de um pai que gostaria de deixar ao filho um legado ou uma memória.
Outras passagens autobiográficas se misturam à narração. O autor rememora os primeiros contatos que teve com índios, quando ainda era criança. Seu pai comprara terras pelos lados da Ilha do Bananal, por volta de 1967. É aliás notável, pela graça e pela discrição, o relato que Bernardo Carvalho faz das aventuras de que era obrigado a participar a bordo do monomotor pilotado pelo pai.
Parecemos ter perdido de vista, a essa altura, o suicídio de Buell Quain. Mas o livro de Bernardo Carvalho, um pouco como o avião de seu pai, vai transitando com enorme sangue-frio por entre diferentes altitudes, por diversos estratos narrativos. Parece haver muitas camadas possíveis entre o que é pura ficção e o que é testemunho pessoal.
As relações entre brancos e índios, entre Bernardo Carvalho e o pai, entre Buell Quain e sua família, e as questões mais amplas da identidade pessoal, da herança familiar e da pertinência a um grupo vão se espelhando ao longo da narrativa e terminam, creio, por elucidar-se mutuamente.
O feito mais notável deste livro é que esse jogo de ambiguidades e imbricações não depende de uma escrita nebulosa e artificial para funcionar. Mesmo quando o mistério em torno de Buell Quain está ainda longe de ser resolvido, as frases de Bernardo Carvalho são claras, curtas, precisas.
Acompanhamos com interesse sempre renovado o desenvolvimento das investigações do narrador; ao mesmo tempo, a sua arte está em nos fazer frequentemente inseguros com relação ao rumo que o livro vai tomando. "Nove Noites" explora com maestria a sensação de estarmos sendo traídos, no exato momento em que parecemos nos aproximar da raiz, da verdadeira origem, da fonte de nossas inquietações. Essa sensação pode ser associada ao tema da paternidade e da memória individual, mas também à idéia de Comte, citada por Carvalho, sobre o governo, o domínio que os mortos exercem sobre os vivos.
No que é ao mesmo tempo ritual de sepultamento e cerimônia de exumação, o texto de "Nove Noites" passa pelos mais diversos estratos da memória e do imaginário. Seria impertinência discutir se é romance esse vaivém entre realidade e ficção; merece, isso sim, o nome de literatura.

Nove Noites


    
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (170 págs.)




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