São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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"OBSCENO ABANDONO"

Sofrimento claustrofóbico está na medida certa

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nada do que se escreve sobre o amor já não foi sentido." A frase abre o texto de orelha do livro de Marilene Felinto, colunista da Folha, para a coleção "Amores Extremos", da editora Record, inaugurada recentemente com "Obsceno Abandono", dela, e "Solo Feminino", de Lívia García-Roza.
Talvez seja o contrário. Talvez, como pensavam Flaubert e Stendhal, tudo o que se sente como amor foi antes literatura. Cada experiência amorosa, seja anônima, insignificante, trágica ou grandiosa, não passa de mais uma nota de rodapé na grande saga romântica da modernidade. Somos personagens de nossas fantasias literárias.
Mas sobram sempre restos (de texto? de vida?) pedindo para ser escritos. Grandes são os escritores capazes de ainda inventar palavras novas para as histórias de amor. Palavras como estas: "E eu resolvi passar o dia seguinte sozinha, só para me preservar e poder me entregar a você (...) como se eu fosse um nascimento".
O grifo, meu, talvez seja dispensável. Quis garantir que o leitor fosse atraído rapidamente para a idéia do nascimento, da inauguração de um corpo em um primeiro encontro de amor. E da fragilidade, como não. Da fragilidade deste ser recém-nascido, parido a partir do toque do amante e lançado na inevitável, na dolorosa dependência de continuar sendo amado para não morrer.
Só que não é da inauguração do amor que este livro trata. É do abandono. Para isso, Marilene Felinto lança mão de uma voz feminina característica de sua literatura, desde o belíssimo (e precoce) "Mulheres de Tijucopapo" (1982).
Como as outras mulheres criadas por Marilene, esta daqui (que chamarei de Madalena) traz a marca da violência verbal. "Pois eu quero que você vá para o inferno, Charles. De todas as pessoas que não me quiseram, você foi a pior. Ora, uma pessoa não pode viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e depois não viver mais, de uma hora para a outra!" Violência de mulher que vira bicho, que vira fera, que se volta toda contra o outro para ainda estar na jogada do amor, para não sucumbir por efeito do (obsceno) abandono. Violência que é o avesso da ternura, o "avesso de um sentimento".
Ressentimento? É possível. A queixa insistente de Madalena, versão moderna das cartas de Soror Mariana Alconforado (traduzidas e prefaciadas por Marilene Felinto para a coleção "Lázuli", da Imago, em 1991), resvala perigosamente no que costumo chamar de estética do ressentimento -são textos em que a autopiedade de um personagem atrai as simpatias do leitor e fornece um ponto de vista único, sem ambiguidades, para a narrativa.
Mas a personagem de "Obsceno Abandono" é construída com mais inteligência. Ela não se ressente: se arrepende. Seu sofrimento é agravado pelo fato de que ela sabia, sempre soube, do risco que estava correndo. Sua dor é agravada pelo arrependimento.
"Meu único caminho teria sido aprender isto: que na vida tem gente que não quer a gente." Mas aprender como? Com a perda? Como aprender com quem nos fala em uma língua incompreensível? Em um dos melhores contos de "Postcard" (92), a personagem narradora explica: "Pois quando alguém diz de você, por acaso, que não te quer mais, soa como língua estrangeira".
Parida e criada pelo amante na língua do amor, Madalena não consegue entender o dialeto do abandono. "Uma pessoa não pode fazer isso com a outra -deveria haver uma lei, um decreto cheio de artigos (...) que proibissem esse tipo de usurpação das ilusões, de fraudes amorosas."
"Obsceno Abandono" é um texto breve, como que escrito com pressa, com precipitação. Efeito dos prazos contratados com a editora? Ou não: efeito do mal-estar em que a autora lança a personagem -e o leitor- sem dó. Felinto escreve sem dó. "Doendo". Se ele soubesse o que é dor. Crateras e rombos e vazios e fisgadas de dores profundas era o que não me faltava, é o que não me falta."
Falta distanciamento, falta ironia, falta qualquer mínima fresta por onde entre ar no sofrimento claustrofóbico de Madalena. Se o texto se alongasse, seria insuportável -daí a brevidade, a pressa em concluir. E ela conclui sem refresco: "O que nasceu e morreu fui eu -eu sozinha, eu sem ninguém". Então aquela que nasceu no amor morre no fim do amor. Resta uma voz, uma falação insistente, dolorida, dirigida a quem não está mais lá para escutar.

Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.

Obsceno Abandono


   
Autora: Marilene Felinto
Editora: Record
Quanto: R$ 17 (84 págs.)



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