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Comentário
É preciso saber rir para gravar em casa
CADÃO VOLPATO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Gravar em casa era uma das
especialidades da minha banda, o Fellini. Por que fazíamos
isso? Porque ser parte de uma
grande gravadora era muito difícil. E porque ter o controle de
tudo era uma sensação indescritível, como se a gente estivesse entrando numa cidade
nova, cheia de luzes, sem peninhas nem liminhas para atazanar. Isso era ser independente.
Gravar discos naquele tempo, os anos 80, era uma chateação. Quando chegava aquele vinil bem embalado, que pressupunha um ritual para ser aberto e tocado, éramos tomados
por uma felicidade infantil.
Até os anos 50, os cantores
tinham que ser Carusos para
colocar as vozes no acetato. No
meu tempo de rock, simplesmente ninguém queria saber
de bandas de rock. Isso até aparecer o Legião. Para o Fellini,
uma das glórias foi ter entrado
num templo, os antigos Estúdios Eldorado, onde gravamos
uma faixa de uma homenagem
a Arnaldo Baptista chamada
"Sanguinho Novo".
A sala
O resto, pelo menos uma
parte desse resto, foi gravado
na sala de visitas de Thomas
Pappon. Usávamos um porta-estúdio de quatro canais (até o
álbum "Sgt. Pepper's Lonely
Hearts Club Band", dos Beatles, foi produzido num aparelho como esse). Em cada canal,
entrava um instrumento, e depois a voz. Em alguns casos, a
voz era gravada ao vivo com os
outros instrumentos.
Foi assim no nosso segundo
disco, "Fellini só Vive Duas Vezes" (1986). Eu cantava e o
Thomas tocava. Lembro do
longo assovio de um guarda-noturno cortando a noite que
foi capturado no disco. Em outra sessão, conversei com o gato Mitzu, que já morreu mas
ainda está passando, invisível,
numa das músicas.
O quarto
Não pense que inventamos a
roda. Antes de nós, muitos artistas fizeram o mesmo caminho. Nick Drake, por exemplo,
gravou algumas coisas no quarto. Depois, o Daft Punk e o Bon
Iver fizeram o mesmo.
O quarto é onde a gente
aprende a tocar um instrumento. No caso do Fellini, a sala de
visitas era uma espécie de entrada para o mundo.
Quando tivemos a nossa recaída em 2001 (a banda havia
acabado oficialmente em
1990), viajei para Londres a fim
de gravar nosso último disco.
E o mais engraçado é que, a
despeito de todas as novidades
tecnológicas, foi na sala de visitas do Thomas, na Pellatt Road,
que eu e ele, mais uma vez reunidos, comprimimos nossas
vozes e instrumentos num porta-estúdio caseiro bem parecido com aquele antigo.
É preciso ter senso de humor
para fazer isso. E não se levar
muito a sério, como a maior
parte dos roqueiros emotivos.
Lulina, que gravou nove discos em chãos de apartamento,
na frente de um laptop que chama de Hermeto, mostra que sabe rir de improviso.
CADÃO VOLPATO é escritor e músico.
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