São Paulo, segunda-feira, 12 de outubro de 2009

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Comentário

É preciso saber rir para gravar em casa

CADÃO VOLPATO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gravar em casa era uma das especialidades da minha banda, o Fellini. Por que fazíamos isso? Porque ser parte de uma grande gravadora era muito difícil. E porque ter o controle de tudo era uma sensação indescritível, como se a gente estivesse entrando numa cidade nova, cheia de luzes, sem peninhas nem liminhas para atazanar. Isso era ser independente. Gravar discos naquele tempo, os anos 80, era uma chateação. Quando chegava aquele vinil bem embalado, que pressupunha um ritual para ser aberto e tocado, éramos tomados por uma felicidade infantil.
Até os anos 50, os cantores tinham que ser Carusos para colocar as vozes no acetato. No meu tempo de rock, simplesmente ninguém queria saber de bandas de rock. Isso até aparecer o Legião. Para o Fellini, uma das glórias foi ter entrado num templo, os antigos Estúdios Eldorado, onde gravamos uma faixa de uma homenagem a Arnaldo Baptista chamada "Sanguinho Novo".

A sala
O resto, pelo menos uma parte desse resto, foi gravado na sala de visitas de Thomas Pappon. Usávamos um porta-estúdio de quatro canais (até o álbum "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, foi produzido num aparelho como esse). Em cada canal, entrava um instrumento, e depois a voz. Em alguns casos, a voz era gravada ao vivo com os outros instrumentos.
Foi assim no nosso segundo disco, "Fellini só Vive Duas Vezes" (1986). Eu cantava e o Thomas tocava. Lembro do longo assovio de um guarda-noturno cortando a noite que foi capturado no disco. Em outra sessão, conversei com o gato Mitzu, que já morreu mas ainda está passando, invisível, numa das músicas.

O quarto
Não pense que inventamos a roda. Antes de nós, muitos artistas fizeram o mesmo caminho. Nick Drake, por exemplo, gravou algumas coisas no quarto. Depois, o Daft Punk e o Bon Iver fizeram o mesmo. O quarto é onde a gente aprende a tocar um instrumento. No caso do Fellini, a sala de visitas era uma espécie de entrada para o mundo.
Quando tivemos a nossa recaída em 2001 (a banda havia acabado oficialmente em 1990), viajei para Londres a fim de gravar nosso último disco. E o mais engraçado é que, a despeito de todas as novidades tecnológicas, foi na sala de visitas do Thomas, na Pellatt Road, que eu e ele, mais uma vez reunidos, comprimimos nossas vozes e instrumentos num porta-estúdio caseiro bem parecido com aquele antigo.
É preciso ter senso de humor para fazer isso. E não se levar muito a sério, como a maior parte dos roqueiros emotivos. Lulina, que gravou nove discos em chãos de apartamento, na frente de um laptop que chama de Hermeto, mostra que sabe rir de improviso.

CADÃO VOLPATO é escritor e músico.



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