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MEMÓRIA
Paes vivia numa "bendita torre de Babel'
EDER CHIODETTO
Editor-adjunto de Fotografia
Chovia quando cheguei à casa do
poeta José Paulo Paes para entrevistá-lo no final de 97. Ao toque da
campainha surgiu Dora, sua mulher. Rapidamente resgatou-me do
frio, da chuva e do trânsito infernal
de Santo Amaro. A casa desconhecia o quão insalubre estava o mundo lá fora. Ali ouvia-se Bach (ou seria Mozart?) e o perfume do almoço de Dora recendia no ambiente.
Fui levado até seu escritório, no
fundo da casa. Ele me aguardava
em pé, apoiado em sua bengala. A
mesma para a qual escreveu:
"Contigo me faço/ pastor do rebanho/ de meus próprios passos".
Conversamos umas duas horas.
Contou-me dos seus tempos de
farmacêutico, de como se tornou
autodidata no aprendizado de línguas, da importância que o concretismo teve em sua obra.
Lembrou o tempo em que construiu a casa numa pequena e sossegada rua, hoje ruidosa avenida. Há
20 anos escreveu: "Sou o poeta
mais importante da minha rua,
mesmo porque minha rua é curta".
Sobre o ofício de tradutor, "essa
bendita torre de Babel", revelou
que lia e escrevia em oito línguas,
mas não sabia falar esses idiomas.
"Sou surdo-mudo em várias línguas. Não as domino, sou dominado por elas."
Trabalhava cinco horas diárias
ouvindo música clássica nos inúmeros rádios espalhados pela casa.
"Quando Dora quer me achar,procura o rádio que está ligado."
Numa rápida pausa da chuva fiz
seu retrato no quintal. Quando viu
a foto publicada ligou se dizendo
emocionado com a imagem em
que aparecia trabalhando sob a
placa da antiga tipografia de seu
avô, afixada na entrada do escritório. Pediu-me cópia de presente,
retribuiu com seu livro "Prosas Seguidas de Odes Mínimas".
Ao saber de sua morte na última
sexta-feira reli seu poema "Escolha
de Túmulo": "Onde os cavalos do
sono/ batem cascos matinais./ Onde o mundo se entreabre/ em casa,
pomar e galo./ Onde ao espelho
duplicam-se/ as anêmonas do
pranto./ Onde um lúcido menino/
propõe uma nova infância./ Ali repousa o poeta./ Ali um vôo termina,/ outro vôo se inicia".
Mais adiante, em "Balancete", ele
define a morte: "esquina ainda por
virar quando já estava quase esquecido o gosto de virá-las". Caso
não soem trombetas, que ao menos os rádios estejam ligados para
além dessa esquina.
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