São Paulo, segunda, 12 de outubro de 1998

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MEMÓRIA
Paes vivia numa "bendita torre de Babel'

EDER CHIODETTO
Editor-adjunto de Fotografia

Chovia quando cheguei à casa do poeta José Paulo Paes para entrevistá-lo no final de 97. Ao toque da campainha surgiu Dora, sua mulher. Rapidamente resgatou-me do frio, da chuva e do trânsito infernal de Santo Amaro. A casa desconhecia o quão insalubre estava o mundo lá fora. Ali ouvia-se Bach (ou seria Mozart?) e o perfume do almoço de Dora recendia no ambiente.
Fui levado até seu escritório, no fundo da casa. Ele me aguardava em pé, apoiado em sua bengala. A mesma para a qual escreveu: "Contigo me faço/ pastor do rebanho/ de meus próprios passos".
Conversamos umas duas horas. Contou-me dos seus tempos de farmacêutico, de como se tornou autodidata no aprendizado de línguas, da importância que o concretismo teve em sua obra.
Lembrou o tempo em que construiu a casa numa pequena e sossegada rua, hoje ruidosa avenida. Há 20 anos escreveu: "Sou o poeta mais importante da minha rua, mesmo porque minha rua é curta".
Sobre o ofício de tradutor, "essa bendita torre de Babel", revelou que lia e escrevia em oito línguas, mas não sabia falar esses idiomas. "Sou surdo-mudo em várias línguas. Não as domino, sou dominado por elas."
Trabalhava cinco horas diárias ouvindo música clássica nos inúmeros rádios espalhados pela casa. "Quando Dora quer me achar,procura o rádio que está ligado."
Numa rápida pausa da chuva fiz seu retrato no quintal. Quando viu a foto publicada ligou se dizendo emocionado com a imagem em que aparecia trabalhando sob a placa da antiga tipografia de seu avô, afixada na entrada do escritório. Pediu-me cópia de presente, retribuiu com seu livro "Prosas Seguidas de Odes Mínimas".
Ao saber de sua morte na última sexta-feira reli seu poema "Escolha de Túmulo": "Onde os cavalos do sono/ batem cascos matinais./ Onde o mundo se entreabre/ em casa, pomar e galo./ Onde ao espelho duplicam-se/ as anêmonas do pranto./ Onde um lúcido menino/ propõe uma nova infância./ Ali repousa o poeta./ Ali um vôo termina,/ outro vôo se inicia".
Mais adiante, em "Balancete", ele define a morte: "esquina ainda por virar quando já estava quase esquecido o gosto de virá-las". Caso não soem trombetas, que ao menos os rádios estejam ligados para além dessa esquina.



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