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'Arte/Cidade 3' busca utopia pós-industrial
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Dizem que o maior desafio
na construção de rodovias como a Transamazônica não é
fazer a estrada, mas conservá-la. Em pouco tempo, a selva
cobre o que foi traçado pelo
homem.
Gosto dessa imagem: ela serve para muitas coisas. A barriga que você perdeu com muito
esforço, a moeda que se tornou
estável por algum tempo, o
próprio empenho do Brasil no
sentido de superar o subdesenvolvimento, tudo parece estar
sujeito a uma lei natural, a da
entropia.
É contra essa lei, suponho,
que surge outra, a lei moral, a
lei de todas as leis: encarrega-se de premiar imaginariamente todo esforço humano,
tudo o que vá contra a natureza.
Qual o prêmio imaginário
dessa luta contra a natureza?
Vejamos. Em primeiro lugar, a
lei moral assegura a seu súdito
um bem grandioso e fantasmagórico: a certeza de que é um
homem, não um animal.
Em segundo lugar, atesta
que, ao contrário dos animais,
o homem não depende de uma
lei externa, mas sim das leis
que ele próprio institui.
Isso faz do homem uma espécie de pequeno deus, capaz de
negar a natureza -paga por
isso o preço de negar sua própria natureza animal.
Complicando mais um pouco: é provável que idéias como
"natureza" e "lei" sejam, elas
próprias, criações humanas.
Nosso pequeno deus atua sobre
o mundo, assim, baseado numa superstição vocabular; maravilha-se a cada momento em
que essa superstição dá certo,
isto é, a cada momento em que
uma lei da natureza parece
funcionar a seu serviço, numa
descoberta tecnológica.
Desse modo, a tecnologia pode ser vista como obra divina
ou obra demoníaca.
Divina, se buscarmos entre a
idéia de lei (moral, humana)
uma concordância feliz com a
matéria (submissa então a regularidades matemáticas e a
aplicações industriais). Esse
era o projeto de Kant, acho.
Demoníaca, se julgarmos que
essa concordância é imaginária, que tudo é uma tentação
do além para que o homem se
julgue superior aos animais, e
assim perca (está na Bíblia) o
paraíso. Essa é, acho, a interpretação de Nietzsche, o mais
religioso dos homens.
Entre Kant e Nietzsche, situa-se Marx, pronto a considerar toda religiosidade como
uma simples invenção humana, e pronto a considerar toda
lei natural como aplicável ao
mundo dos homens. Um misto
de confiança e ceticismo, de
harmonia e de desordem, pode
ser visto nos textos que ele escreveu; a idéia de que a revolução ("desordem" por excelência) seja fértil e construtiva,
moralizante e legisladora, convive com o sarcasmo diante
dos "ordenadores" sociais, dos
racionalistas do socialismo
utópico e do capitalismo equilibrado. Hegel foi, a rigor, um
rito de passagem para Marx.
Mas chega de filosofia. Escrevo este artigo para comentar a
exposição "Arte/Cidade 3",
que ocorre entre as antigas indústrias Matarazzo, no Sumaré, e a Estação da Luz, passando pelos prédios abandonados
do Moinho São Paulo, na Barra Funda.
Muita gente criticou a exposição. Ela se dá em fábricas
abandonadas, entre ruínas industriais.
O resultado é que muita gente ficou sem saber o que era pura ruína e o que era obra de
artista moderno. Este monte
de entulho: é arte ou lixo? Eu
fiquei na dúvida. Esta máquina enorme, mergulhada em
óleo: quem fez? O artista convidado ou o tempo da decadência urbana?
Como saber? É tudo arte ou é
tudo ruína? Passeio entre os
horrores da indústria morta,
num dia de calor. Onde está a
obra? Onde está a história?
Onde está o caos?
Mas não é preciso ser crítico
de arte para perceber que, nessa exposição, o tema está girando precisamente em torno
de tais perguntas. Para simplificar, volto ao tema da Transamazônica.
No "Arte/Cidade 3", é como
se toda a indústria paulista (a
partir de seu maior símbolo, as
indústrias Matarazzo) fosse
uma espécie de rodovia frágil,
de ferrovia rememorada, lutando contra o desaparecimento. Grandiosas instalações
fabris se tornam ruínas, valhacouto de bandidos e traficantes.
Cada obra artística ganha
sentido a partir daí. Cildo Meireles mostra centenas de seringas de injeção enfiadas na parede e no solo. Como se o próprio edifício tivesse morrido de
overdose. Hélio Melo cobre paredes e mais paredes de sapatos velhos: como se denunciasse os operários demitidos, os
operários mortos, os drogados
mortos nesse espaço que conjuga, na mesma exclusão social,
proletários e viciados, produtores e traficantes.
A exposição é bem mais que
isso. Quando Carlos Vergara
mostra todas as plantas medicinais, todos os matos, ervas e
arbustos sobre os quais se erigiu a fábrica extinta, parece
mostrar a vitória da natureza
sobre a falsa vitória de uma fábrica arruinada.
Mas o ponto alto da exposição está nas obras de José Miguel Wisnik e Laura Vinci.
Wisnik fez da chaminé da velha indústria uma espécie de
flauta gigantesca, onde ressoam, aos visitantes, sons que
não sei se da natureza ou da
indústria: guinchos que poderiam ser de pássaro ou de máquina. Laura Vinci transformou dois andares do prédio do
moinho em ampulheta: vemos
uma coluna de areia graciosa
descer, rápida, festiva e fatal,
de um andar para outro do
prédio, como se estivesse marcando a passagem do tempo,
da decadência, num repuxo
invertido e puro.
Mas o símbolo maior desta
exposição talvez esteja na obra
de Carlito Carvalhosa: uns
simples blocos de asfalto. A
idéia era que esses blocos, expostos ao sol, fossem rachando
aos poucos. Ocorre que eles
simplesmente se arrebentaram. Derruíram-se. Acabaram-se. O acaso do calor e da
matéria aumentou a expressividade da coisa.
Como na Transamazônica, o
que se encena nessa exposição
é a fragilidade do desenvolvimentismo diante da natureza,
e por extensão, o naufrágio da
obra diante do meio. Não é
surpreendente que cada obra
pareça morrer diante do ambiente em que está exposta,
ambiente muito grande, opressivo, amaldiçoado: é todo o sonho de desenvolvimento industrial que, aqui, está posto
em questão.
Nada mais atual, diante de
um (mais um) pacote recessivo
na economia. Há, contudo, algo de religioso e de nietzscheano no projeto. Celebra-se a
morte da lei humana. Quanto
mais nostálgico, melhor. Mais
poético, mais bonito: eis a lição
de Wisnik e Laura Vinci. Há a
utopia de uma natureza que
fosse, nem pré-industrial, nem
antiindustrial, mas pós-industrial. Projeta-se um mundo
acabado e caquético, o da tecnologia do século 20. Encena-se um "frisson" pelos excluídos, os drogados, as vítimas do desemprego. Não há
prazer, só pesadelo.
Histeria da decadência? Medo da natureza? Medo da técnica? Terror diante dos excluídos? Preferível dizer: questionamento do Iluminismo, que
aliás não deu certo nem aqui
nem na Europa, mas ainda assim é o que temos a nos pautar,
mais como projeto incompleto
(Habermas) do que como decadentismo trágico ou humorismo sinistro.
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