São Paulo, quarta, 12 de novembro de 1997.




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'Arte/Cidade 3' busca utopia pós-industrial

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Dizem que o maior desafio na construção de rodovias como a Transamazônica não é fazer a estrada, mas conservá-la. Em pouco tempo, a selva cobre o que foi traçado pelo homem.
Gosto dessa imagem: ela serve para muitas coisas. A barriga que você perdeu com muito esforço, a moeda que se tornou estável por algum tempo, o próprio empenho do Brasil no sentido de superar o subdesenvolvimento, tudo parece estar sujeito a uma lei natural, a da entropia.
É contra essa lei, suponho, que surge outra, a lei moral, a lei de todas as leis: encarrega-se de premiar imaginariamente todo esforço humano, tudo o que vá contra a natureza.
Qual o prêmio imaginário dessa luta contra a natureza? Vejamos. Em primeiro lugar, a lei moral assegura a seu súdito um bem grandioso e fantasmagórico: a certeza de que é um homem, não um animal.
Em segundo lugar, atesta que, ao contrário dos animais, o homem não depende de uma lei externa, mas sim das leis que ele próprio institui.
Isso faz do homem uma espécie de pequeno deus, capaz de negar a natureza -paga por isso o preço de negar sua própria natureza animal.
Complicando mais um pouco: é provável que idéias como "natureza" e "lei" sejam, elas próprias, criações humanas. Nosso pequeno deus atua sobre o mundo, assim, baseado numa superstição vocabular; maravilha-se a cada momento em que essa superstição dá certo, isto é, a cada momento em que uma lei da natureza parece funcionar a seu serviço, numa descoberta tecnológica.
Desse modo, a tecnologia pode ser vista como obra divina ou obra demoníaca.
Divina, se buscarmos entre a idéia de lei (moral, humana) uma concordância feliz com a matéria (submissa então a regularidades matemáticas e a aplicações industriais). Esse era o projeto de Kant, acho.
Demoníaca, se julgarmos que essa concordância é imaginária, que tudo é uma tentação do além para que o homem se julgue superior aos animais, e assim perca (está na Bíblia) o paraíso. Essa é, acho, a interpretação de Nietzsche, o mais religioso dos homens.
Entre Kant e Nietzsche, situa-se Marx, pronto a considerar toda religiosidade como uma simples invenção humana, e pronto a considerar toda lei natural como aplicável ao mundo dos homens. Um misto de confiança e ceticismo, de harmonia e de desordem, pode ser visto nos textos que ele escreveu; a idéia de que a revolução ("desordem" por excelência) seja fértil e construtiva, moralizante e legisladora, convive com o sarcasmo diante dos "ordenadores" sociais, dos racionalistas do socialismo utópico e do capitalismo equilibrado. Hegel foi, a rigor, um rito de passagem para Marx.
Mas chega de filosofia. Escrevo este artigo para comentar a exposição "Arte/Cidade 3", que ocorre entre as antigas indústrias Matarazzo, no Sumaré, e a Estação da Luz, passando pelos prédios abandonados do Moinho São Paulo, na Barra Funda.
Muita gente criticou a exposição. Ela se dá em fábricas abandonadas, entre ruínas industriais.
O resultado é que muita gente ficou sem saber o que era pura ruína e o que era obra de artista moderno. Este monte de entulho: é arte ou lixo? Eu fiquei na dúvida. Esta máquina enorme, mergulhada em óleo: quem fez? O artista convidado ou o tempo da decadência urbana?
Como saber? É tudo arte ou é tudo ruína? Passeio entre os horrores da indústria morta, num dia de calor. Onde está a obra? Onde está a história? Onde está o caos?
Mas não é preciso ser crítico de arte para perceber que, nessa exposição, o tema está girando precisamente em torno de tais perguntas. Para simplificar, volto ao tema da Transamazônica.
No "Arte/Cidade 3", é como se toda a indústria paulista (a partir de seu maior símbolo, as indústrias Matarazzo) fosse uma espécie de rodovia frágil, de ferrovia rememorada, lutando contra o desaparecimento. Grandiosas instalações fabris se tornam ruínas, valhacouto de bandidos e traficantes.
Cada obra artística ganha sentido a partir daí. Cildo Meireles mostra centenas de seringas de injeção enfiadas na parede e no solo. Como se o próprio edifício tivesse morrido de overdose. Hélio Melo cobre paredes e mais paredes de sapatos velhos: como se denunciasse os operários demitidos, os operários mortos, os drogados mortos nesse espaço que conjuga, na mesma exclusão social, proletários e viciados, produtores e traficantes.
A exposição é bem mais que isso. Quando Carlos Vergara mostra todas as plantas medicinais, todos os matos, ervas e arbustos sobre os quais se erigiu a fábrica extinta, parece mostrar a vitória da natureza sobre a falsa vitória de uma fábrica arruinada.
Mas o ponto alto da exposição está nas obras de José Miguel Wisnik e Laura Vinci. Wisnik fez da chaminé da velha indústria uma espécie de flauta gigantesca, onde ressoam, aos visitantes, sons que não sei se da natureza ou da indústria: guinchos que poderiam ser de pássaro ou de máquina. Laura Vinci transformou dois andares do prédio do moinho em ampulheta: vemos uma coluna de areia graciosa descer, rápida, festiva e fatal, de um andar para outro do prédio, como se estivesse marcando a passagem do tempo, da decadência, num repuxo invertido e puro.
Mas o símbolo maior desta exposição talvez esteja na obra de Carlito Carvalhosa: uns simples blocos de asfalto. A idéia era que esses blocos, expostos ao sol, fossem rachando aos poucos. Ocorre que eles simplesmente se arrebentaram. Derruíram-se. Acabaram-se. O acaso do calor e da matéria aumentou a expressividade da coisa.
Como na Transamazônica, o que se encena nessa exposição é a fragilidade do desenvolvimentismo diante da natureza, e por extensão, o naufrágio da obra diante do meio. Não é surpreendente que cada obra pareça morrer diante do ambiente em que está exposta, ambiente muito grande, opressivo, amaldiçoado: é todo o sonho de desenvolvimento industrial que, aqui, está posto em questão.
Nada mais atual, diante de um (mais um) pacote recessivo na economia. Há, contudo, algo de religioso e de nietzscheano no projeto. Celebra-se a morte da lei humana. Quanto mais nostálgico, melhor. Mais poético, mais bonito: eis a lição de Wisnik e Laura Vinci. Há a utopia de uma natureza que fosse, nem pré-industrial, nem antiindustrial, mas pós-industrial. Projeta-se um mundo acabado e caquético, o da tecnologia do século 20. Encena-se um "frisson" pelos excluídos, os drogados, as vítimas do desemprego. Não há prazer, só pesadelo.
Histeria da decadência? Medo da natureza? Medo da técnica? Terror diante dos excluídos? Preferível dizer: questionamento do Iluminismo, que aliás não deu certo nem aqui nem na Europa, mas ainda assim é o que temos a nos pautar, mais como projeto incompleto (Habermas) do que como decadentismo trágico ou humorismo sinistro.



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