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Imagens do Inconsciente
Antes de morrer, Nise da Silveira selecionou obras de seu centro psiquiátrico para a mostra "Brasil 500 Anos"
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CRISTIAN AVELLO CANCINO
enviado especial ao Rio
Uma visita ao Centro Psiquiátrico Pedro 2º, no bairro carioca
de Engenho de Dentro, convém,
sobretudo, para desmistificar a figura do "louco", tido pela psicologia tradicional e pelo senso comum como um sujeito alienado,
pouco afetivo, incapaz de estabelecer algum vínculo com o mundo prosaico.
O Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952 pela
psicóloga alagoana Nise da Silveira, morta no dia 30 de outubro
aos 94 anos, reserva cerca de 300
mil obras criadas pela mente dos
pacientes do hospital psiquiátrico. Agora, parte desse acervo vai
compor o núcleo "Imagens do Inconsciente", da mostra "Brasil
500 Anos", promovida pela Fundação Bienal de São Paulo, marcada para acontecer em abril do
ano que vem.
É o reconhecimento ao legado
de Nise da Silveira, que fincou
com seu ímpeto nortista verdadeira revolução no tratamento
psiquiátrico prescrito aos esquizofrênicos, destituindo, assim, a
autoridade daqueles que defendiam tratamentos de choque para
os "alienados", capazes, pelo que
se vê, de deixar absortos mente e
coração dos que se aventuram a
visitar suas obras.
Conta-se que, quando Nise propôs a criação de um ateliê de artes
plásticas naquele hospital, o que
em parte se deve ao fascínio infundido por tratados sobre psicanálise de autores como H. Prinzhorn e K. Jaspers (os primeiros a
se darem conta da importância do
"prazer estético" no tratamento
psiquiátrico), os arautos da terapia de choque envenenaram seus
gatos, insultaram-na com gritos.
Antes de morrer, porém, Nise
preparou sua vingança derradeira. E ela vem com a intensidade
inaudita de cores que revelam a
vivência de "estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos", como escreveu Antonin Artaud, autor caro ao gosto da psicóloga, citado em seu "Imagens
do Inconsciente" (ed. Alhambra,
1981).
É que, antes de morrer, Nise
concluiu, ao lado do curador Luiz
Carlos Mello, a seleção das obras
que estarão na exposição comemorativa dos 500 anos do Brasil.
O misterioso instinto que rege a
palheta desses artistas justifica o
interesse. "Conheci primeiro as
mandalas dos artistas do Engenho de Dentro. Adelina Gomes,
Fernando Diniz, Raphael, eles traziam uma lição nova de sabedoria
sobre a utilização das cores", conta a artista plástica Lygia Pape,
que, no final dos anos 70, frequentava as reuniões promovidas
por Nise às terças no museu.
Um dos selecionados é, para o
poeta Ferreira Gullar, "o melhor
pintor do Brasil". Trata-se de
Emygdio de Barros (1895-1986),
que, dizia Nise, "retratava seu
sentimento de solidão diante das
grades do hospital". Observando
uma de suas obras estampada em
um catálogo do museu, o tarimbado artista plástico Artur Barrio
exclamou, semana passada: "É
melhor que Portinari".
Coisa reparada muito antes por
Mário Pedrosa. Em 1950, o crítico
assinava, no jornal "Correio da
Manhã", um texto que continha,
entre outras considerações: "Os
artistas do Engenho de Dentro superam qualquer respeito a convenções acadêmicas estabelecidas
e a quaisquer rotinas da visão naturalista e fotográfica. Em nenhum deles as receitas de escola
são levadas em consideração".
A isso, Pedrosa chamou de "arte
virgem", influenciado pelo francês Jean Dubuffet, que, em 1945,
fundara a "Companhia de Arte
Bruta", movimento que reunia
criações de pacientes de hospitais
psiquiátricos, presidiários e marginais de todo tipo. "A arte bruta é
uma operação artística reinventada em todas as suas fases pelo autor, a partir somente de seus impulsos", escreveu Dubuffet.
É interessante notar que, sem
referências na teoria estética, os
pintores e artistas egressos de
hospitais psiquiátricos criam de
acordo a suas situações face ao
mundo próximo e a suas "vivências internas". "Há, portanto, um
relato profundo nas pinturas dos
pacientes, que nos permitem o
acesso à reluzente energia psíquica que se abriga e convulsiona o
espírito do esquizofrênico", diz
Luiz Carlos Mello.
Por conta disso, Nélson Aguilar,
curador-chefe da mostra "Brasil
500 Anos", tem todas as justificativas para a inclusão do núcleo
"Imagens do Inconsciente" na exposição.
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