São Paulo, Sexta-feira, 12 de Novembro de 1999
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Imagens do Inconsciente


Antes de morrer, Nise da Silveira selecionou obras de seu centro psiquiátrico para a mostra "Brasil 500 Anos"


CRISTIAN AVELLO CANCINO
enviado especial ao Rio


Uma visita ao Centro Psiquiátrico Pedro 2º, no bairro carioca de Engenho de Dentro, convém, sobretudo, para desmistificar a figura do "louco", tido pela psicologia tradicional e pelo senso comum como um sujeito alienado, pouco afetivo, incapaz de estabelecer algum vínculo com o mundo prosaico.
O Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952 pela psicóloga alagoana Nise da Silveira, morta no dia 30 de outubro aos 94 anos, reserva cerca de 300 mil obras criadas pela mente dos pacientes do hospital psiquiátrico. Agora, parte desse acervo vai compor o núcleo "Imagens do Inconsciente", da mostra "Brasil 500 Anos", promovida pela Fundação Bienal de São Paulo, marcada para acontecer em abril do ano que vem.
É o reconhecimento ao legado de Nise da Silveira, que fincou com seu ímpeto nortista verdadeira revolução no tratamento psiquiátrico prescrito aos esquizofrênicos, destituindo, assim, a autoridade daqueles que defendiam tratamentos de choque para os "alienados", capazes, pelo que se vê, de deixar absortos mente e coração dos que se aventuram a visitar suas obras.
Conta-se que, quando Nise propôs a criação de um ateliê de artes plásticas naquele hospital, o que em parte se deve ao fascínio infundido por tratados sobre psicanálise de autores como H. Prinzhorn e K. Jaspers (os primeiros a se darem conta da importância do "prazer estético" no tratamento psiquiátrico), os arautos da terapia de choque envenenaram seus gatos, insultaram-na com gritos.
Antes de morrer, porém, Nise preparou sua vingança derradeira. E ela vem com a intensidade inaudita de cores que revelam a vivência de "estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos", como escreveu Antonin Artaud, autor caro ao gosto da psicóloga, citado em seu "Imagens do Inconsciente" (ed. Alhambra, 1981).
É que, antes de morrer, Nise concluiu, ao lado do curador Luiz Carlos Mello, a seleção das obras que estarão na exposição comemorativa dos 500 anos do Brasil.
O misterioso instinto que rege a palheta desses artistas justifica o interesse. "Conheci primeiro as mandalas dos artistas do Engenho de Dentro. Adelina Gomes, Fernando Diniz, Raphael, eles traziam uma lição nova de sabedoria sobre a utilização das cores", conta a artista plástica Lygia Pape, que, no final dos anos 70, frequentava as reuniões promovidas por Nise às terças no museu.
Um dos selecionados é, para o poeta Ferreira Gullar, "o melhor pintor do Brasil". Trata-se de Emygdio de Barros (1895-1986), que, dizia Nise, "retratava seu sentimento de solidão diante das grades do hospital". Observando uma de suas obras estampada em um catálogo do museu, o tarimbado artista plástico Artur Barrio exclamou, semana passada: "É melhor que Portinari".
Coisa reparada muito antes por Mário Pedrosa. Em 1950, o crítico assinava, no jornal "Correio da Manhã", um texto que continha, entre outras considerações: "Os artistas do Engenho de Dentro superam qualquer respeito a convenções acadêmicas estabelecidas e a quaisquer rotinas da visão naturalista e fotográfica. Em nenhum deles as receitas de escola são levadas em consideração".
A isso, Pedrosa chamou de "arte virgem", influenciado pelo francês Jean Dubuffet, que, em 1945, fundara a "Companhia de Arte Bruta", movimento que reunia criações de pacientes de hospitais psiquiátricos, presidiários e marginais de todo tipo. "A arte bruta é uma operação artística reinventada em todas as suas fases pelo autor, a partir somente de seus impulsos", escreveu Dubuffet.
É interessante notar que, sem referências na teoria estética, os pintores e artistas egressos de hospitais psiquiátricos criam de acordo a suas situações face ao mundo próximo e a suas "vivências internas". "Há, portanto, um relato profundo nas pinturas dos pacientes, que nos permitem o acesso à reluzente energia psíquica que se abriga e convulsiona o espírito do esquizofrênico", diz Luiz Carlos Mello.
Por conta disso, Nélson Aguilar, curador-chefe da mostra "Brasil 500 Anos", tem todas as justificativas para a inclusão do núcleo "Imagens do Inconsciente" na exposição.


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