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CARLOS HEITOR CONY
O homem que descobriu o mistério da moça
Acordou mais cedo do que a
moça. Nem foi por cálculo ou vontade. Passara a dormir menos
-quando tinha a idade da moça
também dormia até tarde-, o
pai reclamava, acusava-o de indolência. Onde já se viu, tanta
coisa bonita na manhã, tanta coisa a fazer na vida, e o filho emplastrado na cama, as janelas do
quarto fechadas.
O tempo passara, aos poucos foi
se habituando a acordar cedo.
Primeiro os estudos, depois o trabalho, finalmente o prazer de pular da cama simplesmente para
apreciar o nascer do dia, tornando-o maior. Na Idade Média, os
frades acordavam cedinho para
terem mais tempo de não fazer
nada. Era um motivo.
O fato é que acordara e se espantara com a moça ao lado, ferrada no sono. Era a primeira noite (e talvez fosse a última) que
dormiam juntos. O pensamento
que lhe veio, como todos os demais a que se habituara ao longo
da vida, foi egoísta: "Ainda bem
que acordei antes. Seria pior se
continuasse dormindo e ela acordasse e fizesse exatamente o que
estou fazendo agora".
Confiando na impunidade,
olhou-a como nunca a olhara, observando-a indefesa, o corpo pousado na cama como um fruto
branco e comprido, a coberta rolara para o chão e ele a examinava toda, descobria ângulos mortos
em que nunca reparara antes, o
polegar dentro da boca, a curva
macia dos ombros, a nuca cheia
de uma penugem cor de ouro, a
perna encolhida, cujo joelho encostava no seu.
Bem, não era a primeira vez que
acordava com uma mulher ao lado. Mas, sempre que chegava
aquele momento, houvera antes
uma espécie de noviciado ou de
laboratório, nada era espantoso,
tudo parecia sabido. Corpo por
corpo, todas tinham as mesmas
curvas, o mesmo jeito de encolher
a perna, a mesma violência nos
quadris, até mesmo o cheiro igual
da noite e do sono, o cheiro residual do orgasmo da véspera.
Com a moça era diferente. Não
que fosse tão súbita assim, apenas
fora mais inesperada. E só agora,
com a vantagem de estar acordado e lúcido, penetrava-a com o
olhar e procurava entender o que
ela contara no início daquela noite. Uma historinha boba, que poderia ser um conto infantil se não
fosse tão mórbido e, até certo ponto, tão cruel.
Era menina ainda, ali pelos 9, 10
anos, e ia brincar na pracinha ao
lado de sua casa. Jogava amarelinha com outras meninas, apostava corrida, pulava corda -joguinhos de seu tempo e lugar, era do
interior de São Paulo. Até que um
dia viu chegar a mulher aleijada,
com uma das pernas mais fina do
que a outra. Apoiava-se em muletas e parecia cansada. Chegou à
praça, procurou um banco, sentou-se com dificuldade e colocou
as muletas ao lado, como se elas
também estivessem fatigadas e
precisassem descansar.
A menina parou de pular amarelinha. Ficou fascinada, olhando
a mulher que, sentada, não parecia ter o aleijão nas pernas, parecia ser como todo mundo. Mas tinha ao lado, uma em cima da outra, as duas muletas que eram
parte de seu corpo, matéria de sua
matéria.
Naquele primeiro dia, a menina
só ficou olhando. Mas na manhã
seguinte nem quis saber de pular
amarelinha com as outras gurias.
Ficou esperando a mulher chegar
com suas muletas e o seu cansaço.
E ela chegou, começou a chegar
sempre, até que a menina tomou
coragem e procurou conversa.
Na verdade, não estava interessada na mulher, estava interessada naquelas muletas que a perturbavam, que tinham um mistério, um apelo maior do que a curiosidade e a compaixão. Com
mais intimidade, a menina um
dia perguntou se podia "dar uma
volta" com as muletas.
A mulher estranhou. Nunca lhe
haviam pedido isso. Pelo contrário, todos os que dela se aproximavam não davam importância
às muletas, faziam até esforço para isso, como se elas não existissem. E vinha aquela menina, pedia para usá-las.
Foi a soma de duas curiosidades. A da menina querendo saber
como a mulher se sentia usando
muletas. A da mulher querendo
saber por que a menina lhe pedira
aquilo. Sim, a mulher ofereceu-lhe as muletas, chegou a ensinar
como devia usá-las. E a menina
deu uma volta na pracinha, compenetrada, sentindo estranho prazer naquele amparo que a tornava mais sólida e, ao mesmo tempo, mais frágil.
Fora essa a história que a moça
contara, no início daquela primeira noite em que dormiriam
juntos. E agora ela continuava a
dormir, com a curva violenta dos
quadris, a maciez dos ombros, a
penugem cor de ouro na nuca, o
dedo polegar na boca. O que havia dentro daquilo tudo?
O homem sabia. A resposta estava na cara. A moça era a menina em ponto maior, logo, com
maior curiosidade. Tal como no
caso da pracinha, ela quisera dar
uma volta, ver o mundo como era
ou como podia ser, tendo um ponto de apoio que podia descartar a
qualquer momento.
Nem mesmo descobrindo isso o
homem odiou a moça. Pelo contrário. Desejou-a mais uma vez.
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