São Paulo, Sexta-feira, 12 de Novembro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY

O homem que descobriu o mistério da moça

Acordou mais cedo do que a moça. Nem foi por cálculo ou vontade. Passara a dormir menos -quando tinha a idade da moça também dormia até tarde-, o pai reclamava, acusava-o de indolência. Onde já se viu, tanta coisa bonita na manhã, tanta coisa a fazer na vida, e o filho emplastrado na cama, as janelas do quarto fechadas.
O tempo passara, aos poucos foi se habituando a acordar cedo. Primeiro os estudos, depois o trabalho, finalmente o prazer de pular da cama simplesmente para apreciar o nascer do dia, tornando-o maior. Na Idade Média, os frades acordavam cedinho para terem mais tempo de não fazer nada. Era um motivo.
O fato é que acordara e se espantara com a moça ao lado, ferrada no sono. Era a primeira noite (e talvez fosse a última) que dormiam juntos. O pensamento que lhe veio, como todos os demais a que se habituara ao longo da vida, foi egoísta: "Ainda bem que acordei antes. Seria pior se continuasse dormindo e ela acordasse e fizesse exatamente o que estou fazendo agora".
Confiando na impunidade, olhou-a como nunca a olhara, observando-a indefesa, o corpo pousado na cama como um fruto branco e comprido, a coberta rolara para o chão e ele a examinava toda, descobria ângulos mortos em que nunca reparara antes, o polegar dentro da boca, a curva macia dos ombros, a nuca cheia de uma penugem cor de ouro, a perna encolhida, cujo joelho encostava no seu.
Bem, não era a primeira vez que acordava com uma mulher ao lado. Mas, sempre que chegava aquele momento, houvera antes uma espécie de noviciado ou de laboratório, nada era espantoso, tudo parecia sabido. Corpo por corpo, todas tinham as mesmas curvas, o mesmo jeito de encolher a perna, a mesma violência nos quadris, até mesmo o cheiro igual da noite e do sono, o cheiro residual do orgasmo da véspera.
Com a moça era diferente. Não que fosse tão súbita assim, apenas fora mais inesperada. E só agora, com a vantagem de estar acordado e lúcido, penetrava-a com o olhar e procurava entender o que ela contara no início daquela noite. Uma historinha boba, que poderia ser um conto infantil se não fosse tão mórbido e, até certo ponto, tão cruel.
Era menina ainda, ali pelos 9, 10 anos, e ia brincar na pracinha ao lado de sua casa. Jogava amarelinha com outras meninas, apostava corrida, pulava corda -joguinhos de seu tempo e lugar, era do interior de São Paulo. Até que um dia viu chegar a mulher aleijada, com uma das pernas mais fina do que a outra. Apoiava-se em muletas e parecia cansada. Chegou à praça, procurou um banco, sentou-se com dificuldade e colocou as muletas ao lado, como se elas também estivessem fatigadas e precisassem descansar.
A menina parou de pular amarelinha. Ficou fascinada, olhando a mulher que, sentada, não parecia ter o aleijão nas pernas, parecia ser como todo mundo. Mas tinha ao lado, uma em cima da outra, as duas muletas que eram parte de seu corpo, matéria de sua matéria.
Naquele primeiro dia, a menina só ficou olhando. Mas na manhã seguinte nem quis saber de pular amarelinha com as outras gurias. Ficou esperando a mulher chegar com suas muletas e o seu cansaço. E ela chegou, começou a chegar sempre, até que a menina tomou coragem e procurou conversa.
Na verdade, não estava interessada na mulher, estava interessada naquelas muletas que a perturbavam, que tinham um mistério, um apelo maior do que a curiosidade e a compaixão. Com mais intimidade, a menina um dia perguntou se podia "dar uma volta" com as muletas.
A mulher estranhou. Nunca lhe haviam pedido isso. Pelo contrário, todos os que dela se aproximavam não davam importância às muletas, faziam até esforço para isso, como se elas não existissem. E vinha aquela menina, pedia para usá-las.
Foi a soma de duas curiosidades. A da menina querendo saber como a mulher se sentia usando muletas. A da mulher querendo saber por que a menina lhe pedira aquilo. Sim, a mulher ofereceu-lhe as muletas, chegou a ensinar como devia usá-las. E a menina deu uma volta na pracinha, compenetrada, sentindo estranho prazer naquele amparo que a tornava mais sólida e, ao mesmo tempo, mais frágil.
Fora essa a história que a moça contara, no início daquela primeira noite em que dormiriam juntos. E agora ela continuava a dormir, com a curva violenta dos quadris, a maciez dos ombros, a penugem cor de ouro na nuca, o dedo polegar na boca. O que havia dentro daquilo tudo?
O homem sabia. A resposta estava na cara. A moça era a menina em ponto maior, logo, com maior curiosidade. Tal como no caso da pracinha, ela quisera dar uma volta, ver o mundo como era ou como podia ser, tendo um ponto de apoio que podia descartar a qualquer momento.
Nem mesmo descobrindo isso o homem odiou a moça. Pelo contrário. Desejou-a mais uma vez.


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