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MARCELO COELHO
Incorreção política que cabe
Macas e pacientes se amontoam nos corredores do
hospital. Não há verbas para nada. Os médicos, correndo de um
lado para outro, nunca sabem o
nome dos doentes. Nos quartos
coletivos, há barulho e sujeira.
Não convém deixar objetos de valor por ali: os furtos são tão frequentes que nem adianta chamar
a polícia.
Parece o Brasil, mas é o sistema
de saúde do Canadá: ao menos
como foi retratado em "As Invasões Bárbaras", filme de Denys
Arcand, atualmente em cartaz.
No começo, pensei que estivesse
diante de um panfleto político ultraliberal: a medicina "socializada", os velhos ideais da social-democracia de inspiração européia,
as convicções deste ou daquele
personagem de esquerda, tudo vira picadinho nesse filme incorretíssimo.
Quem está doente, muito doente, é Rémy, um velho explosivo,
provocador, egoísta e assanhado.
Ex-católico, ex-maoísta, ex-professor univesitário de história, ele
bem que poderia buscar tratamento num bom hospital particular americano.
Recusa-se a isso: "Fui a favor do
sistema socializado de saúde e
agora tenho de aguentar as consequências", declara, apoplético,
ao filho yuppie Sébastien. Não é
idealismo, é teimosia. Vai continuar no Canadá, enfrentando a
morte num hospital em péssimas
condições.
O filho não se abala. É um daqueles tipos espertos do mercado
financeiro, que combinam esplêndidas gravatas italianas com
camisas azuis de colarinho branco e parecem sempre ter um sorrisinho impalpável no rosto de menino. Em poucos dias, Sébastien
arma um esquema de corrupção
completo no hospital. Administradores públicos, sindicalistas,
enfermeiras, ex-alunos e até traficantes de droga passarão a assegurar ao doente condições excepcionais de conforto. E o velho
marxista, agora, não reclama de
mais nada.
À primeira vista, seria bastante
cínica a tese do filme: o dinheiro
compra tudo e, na hora do aperto,
nenhuma ideologia fica de pé. Essa idéia é forte em "As Invasões
Bárbaras", sem dúvida, mas não
esgota seu significado. De algum
modo, o cinismo aparece no filme
mais como um recurso estético do
que como uma mensagem a ser
defendida.
Tudo seria muito propagandístico, de fato, se tivéssemos um filho bonzinho, forçado a empregar
estratagemas corruptos pelo bem-estar do pai agonizante. Seria esse, talvez, o modelo de uma produção hollywoodiana. Mas o diretor Denys Arcand, assim como
o velho professor aposentado do
filme, não se entrega alegremente
às seduções da mentalidade americana.
É menos por amor ao pai e mais
por simples espírito de competição e eficiência que o jovem yuppie arranja tudo no hospital. O
profissionalismo frio de sua atuação, se chega a ser chocante em alguns momentos, é o que termina
dando dignidade ética ao filme de
Arcand. Tudo o que o enredo poderia ter de apelativo, de sentimental, de desonesto do ponto de
vista artístico fica, na verdade,
neutralizado graças à incorreção
política da mensagem.
"O Filho da Noiva", filme muito
simpático de Juan José Campanella, tinha justamente o defeito do
excesso de correção política. O
protagonista, às voltas com a velhice e a doença dos pais, era um
quarentão vitimado pela crise
econômica da Argentina. O espectador não tinha escolha: estava condenado a simpatizar com
ele. Em "As Invasões Bárbaras",
ficamos brigando com os personagens, o que é mais interessante;
no mínimo, estamos sempre
prontos a criticar o comportamento de todos.
O professor de esquerda é também um debochado, um hedonista, um insensível; o filho yuppie,
cujo grande prazer é o de flertar
com a criminalidade e a corrupção, não deixa de ser autenticamente dedicado e ético.
É sua namorada, Gaëlle, quem
diz a frase que talvez resuma melhor a estética do filme. Pretende
casar-se com Sébastien, viver com
ele a vida inteira, mas se recusa a
falar em "amor". A palavra lhe
parece completamente desgastada pelas letras de música romântica: prefiro qualquer coisa, diz, a
ter a minha vida pautada pelas
canções de Charles Aznavour e
outros do mesmo tipo.
Trata-se de um princípio estético que o filme, como as produções
do Dogma 95, procura seguir rigorosamente. Nada de fundo musical meloso, de truques, de ilusões hollywoodianas.
Voltamos, assim, a um universo
de convicções, princípios e purezas que "As Invasões Bárbaras",
com todo o cinismo do enredo, estava, à primeira vista, a ponto de
destruir. Mas acho que as coisas
não são tão simples assim.
Denys Arcand arranja uma
música bem brega para terminar
o filme, como se fosse a sua vez de
ser tão contraditório e falível como seus personagens. E também o
protagonista certinho, reconciliado com a ética e com seu pai,
abandona a cena e some no horizonte, ao lado da namorada perfeita. Desconfiamos que não fosse
essa a solução mais desejável.
Não terei sido o único espectador,
creio, a preferir que outro final,
mais incerto, antiutópico e romanticamente plausível ocorresse. Mas esse outro final... bem,
não posso contar qual é.
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