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São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2003

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MARCELO COELHO

Incorreção política que cabe

Macas e pacientes se amontoam nos corredores do hospital. Não há verbas para nada. Os médicos, correndo de um lado para outro, nunca sabem o nome dos doentes. Nos quartos coletivos, há barulho e sujeira. Não convém deixar objetos de valor por ali: os furtos são tão frequentes que nem adianta chamar a polícia.
Parece o Brasil, mas é o sistema de saúde do Canadá: ao menos como foi retratado em "As Invasões Bárbaras", filme de Denys Arcand, atualmente em cartaz.
No começo, pensei que estivesse diante de um panfleto político ultraliberal: a medicina "socializada", os velhos ideais da social-democracia de inspiração européia, as convicções deste ou daquele personagem de esquerda, tudo vira picadinho nesse filme incorretíssimo.
Quem está doente, muito doente, é Rémy, um velho explosivo, provocador, egoísta e assanhado. Ex-católico, ex-maoísta, ex-professor univesitário de história, ele bem que poderia buscar tratamento num bom hospital particular americano.
Recusa-se a isso: "Fui a favor do sistema socializado de saúde e agora tenho de aguentar as consequências", declara, apoplético, ao filho yuppie Sébastien. Não é idealismo, é teimosia. Vai continuar no Canadá, enfrentando a morte num hospital em péssimas condições.
O filho não se abala. É um daqueles tipos espertos do mercado financeiro, que combinam esplêndidas gravatas italianas com camisas azuis de colarinho branco e parecem sempre ter um sorrisinho impalpável no rosto de menino. Em poucos dias, Sébastien arma um esquema de corrupção completo no hospital. Administradores públicos, sindicalistas, enfermeiras, ex-alunos e até traficantes de droga passarão a assegurar ao doente condições excepcionais de conforto. E o velho marxista, agora, não reclama de mais nada.
À primeira vista, seria bastante cínica a tese do filme: o dinheiro compra tudo e, na hora do aperto, nenhuma ideologia fica de pé. Essa idéia é forte em "As Invasões Bárbaras", sem dúvida, mas não esgota seu significado. De algum modo, o cinismo aparece no filme mais como um recurso estético do que como uma mensagem a ser defendida.
Tudo seria muito propagandístico, de fato, se tivéssemos um filho bonzinho, forçado a empregar estratagemas corruptos pelo bem-estar do pai agonizante. Seria esse, talvez, o modelo de uma produção hollywoodiana. Mas o diretor Denys Arcand, assim como o velho professor aposentado do filme, não se entrega alegremente às seduções da mentalidade americana.
É menos por amor ao pai e mais por simples espírito de competição e eficiência que o jovem yuppie arranja tudo no hospital. O profissionalismo frio de sua atuação, se chega a ser chocante em alguns momentos, é o que termina dando dignidade ética ao filme de Arcand. Tudo o que o enredo poderia ter de apelativo, de sentimental, de desonesto do ponto de vista artístico fica, na verdade, neutralizado graças à incorreção política da mensagem.
"O Filho da Noiva", filme muito simpático de Juan José Campanella, tinha justamente o defeito do excesso de correção política. O protagonista, às voltas com a velhice e a doença dos pais, era um quarentão vitimado pela crise econômica da Argentina. O espectador não tinha escolha: estava condenado a simpatizar com ele. Em "As Invasões Bárbaras", ficamos brigando com os personagens, o que é mais interessante; no mínimo, estamos sempre prontos a criticar o comportamento de todos.
O professor de esquerda é também um debochado, um hedonista, um insensível; o filho yuppie, cujo grande prazer é o de flertar com a criminalidade e a corrupção, não deixa de ser autenticamente dedicado e ético.
É sua namorada, Gaëlle, quem diz a frase que talvez resuma melhor a estética do filme. Pretende casar-se com Sébastien, viver com ele a vida inteira, mas se recusa a falar em "amor". A palavra lhe parece completamente desgastada pelas letras de música romântica: prefiro qualquer coisa, diz, a ter a minha vida pautada pelas canções de Charles Aznavour e outros do mesmo tipo.
Trata-se de um princípio estético que o filme, como as produções do Dogma 95, procura seguir rigorosamente. Nada de fundo musical meloso, de truques, de ilusões hollywoodianas.
Voltamos, assim, a um universo de convicções, princípios e purezas que "As Invasões Bárbaras", com todo o cinismo do enredo, estava, à primeira vista, a ponto de destruir. Mas acho que as coisas não são tão simples assim.
Denys Arcand arranja uma música bem brega para terminar o filme, como se fosse a sua vez de ser tão contraditório e falível como seus personagens. E também o protagonista certinho, reconciliado com a ética e com seu pai, abandona a cena e some no horizonte, ao lado da namorada perfeita. Desconfiamos que não fosse essa a solução mais desejável. Não terei sido o único espectador, creio, a preferir que outro final, mais incerto, antiutópico e romanticamente plausível ocorresse. Mas esse outro final... bem, não posso contar qual é.


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