São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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"OURO CARMIM"

Diretor de "O Círculo" rompe com clichês associados à produção de seu país em filme com roteiro de Kiarostami

Panahi tritura ingenuidade do cinema iraniano

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DA ILUSTRADA

Dramas protagonizados por crianças, aldeias, paisagens montanhosas. Céus azuis e predominância de imagens que resultam em pura contemplação já se tornaram, mais que índices, clichês do cinema iraniano que circula pelo mundo há cerca de uma década. Depois de se exercitar nesse código com "O Balão Branco" (1995), Jafar Panahi ultrapassou os limites dessa estética no já excepcional "O Círculo" (2000), mergulho no cotidiano feminino anônimo que oferecia uma visão em todos os pontos crítica da concepção corrente no Ocidente da mulher sob o islã. Com "Ouro Carmim" (2003) -cujo roteiro é assinado pelo mestre Abbas Kiarostami- o cineasta tritura os últimos resíduos da ingenuidade associada aos filmes iranianos.
O filme se abre com um plano-seqüência (já rico de pontos de vista, a despeito da câmera fixa) de uma violência assombrosa para nosso olhar estereotipado. Nele, vemos um assalto que culmina com a tomada de um refém, seu assassinato e o suicídio de Hussein, protagonista e vítima dessa história trágica. Na hora e meia seguinte, a adoção do flashback se justificará não apenas pela riqueza da estrutura teoremática da narrativa em forma de círculo como também para revelar em minúcias as origens do ato violento. Assim, a ação substitui a contemplação num processo de ruptura com o clichê.
Em vez do espaço rural, estamos dentro do urbano, em Teerã, com seu trânsito caótico, acompanhando a perambulação de Hussein e seu cunhado, Ali, sobre uma moto. À noite, Hussein entrega pizzas. De dia, completa o orçamento com assaltos.
Ex-soldado na guerra Irã-Iraque, Hussein encontra-se doente e sofre os efeitos do uso da cortisona. Está inchado e falta-lhe ar. Seu corpo pesado transmite, mais que uma metáfora, uma opacidade diante daquilo que seus olhos vêem, mas que sua pessoa não consegue assimilar: o desequilíbrio social.
Pois seja como pequeno criminoso, seja como entregador de pizzas, Hussein se depara insistentemente com um mundo -o da opulência- cujo acesso lhe está bloqueado. Nesta visão, Panahi elabora uma amostragem rica desse bloqueio, com imagens sem subterfúgios, quase literais do desajuste social. O entregador não pode entrar num prédio onde jovens ricos de Teerã promovem uma festa. O mesmo se dá numa joalheria. Nem na aparente liberdade das ruas Hussein encontra espaço para se mover.
Porém Panahi não se atém à mera retórica sobre injustiça social. Toma posse desse significado para criar, através dele, uma expressão cinematográfica de extrema elegância que intensifica seu poder subversivo através de uma dinâmica entre a velocidade e a paralisia, entre o movimento e aquilo que o bloqueia. O torpor social ganha, através do filme, expressão no urbano e no orgânico. O trânsito engarrafado e uma crise de falta de ar se tornam elementos tão críticos quanto a luta de classes.
O realismo, pedra de toque da escola iraniana, está lá, mas prestes a todo momento a se transmutar em expressionismo e até mesmo em surrealismo, quando a realidade se revela como absurdo.
Exemplo é a penúltima seqüência, em que Hussein é convidado a entrar num apartamento luxuosíssimo para servir de testemunha da miséria humana (não a dele desta vez). Ali, experimenta os signos da riqueza em seu próprio corpo não para absorvê-la, mas para repugná-la de uma vez por todas. Vestido comicamente com um roupão (outro sinal de não pertencimento), Hussein vislumbra aos seus pés o tapete urbano das luzes da cidade e reage a essa visão, ao mesmo tempo cósmica e surreal, com um sonoro arroto.
Nesse desajuste entre o externo e o interno, do indivíduo com o mundo, em que a realidade se encontra muito mais próxima de uma alucinação, Panahi reafirma a inspiração neo-realista do cinema iraniano. Ponto de partida da modernidade no cinema, o neo-realismo (e toda a sua linhagem, da nouvelle vague francesa aos cinemas novos do Terceiro Mundo) criou pelo cinema esse modo de ver que não comporta mais a ingenuidade e revelou, para as massas, a crise dos sujeitos.
Bom saber que essa lição foi não apenas bem aprendida, mas que também continua a ser ensinada.


Ouro Carmim
Talaye Sorkh
    
Direção: Jafar Panahi
Produção: Irã, 2003
Com: Hossain Emadeddin, Kamyar Sheisi, Azita Rayeji
Quando: a partir de hoje no Cinesesc



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