São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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"GOSTO DE SANGUE"

Irmãos Coen realçam os equívocos

PAULO SANTOS LIMA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Há algo de imponderável e patético que assombra o sucesso dos personagens dos filmes de Joel e Ethan Coen. Pais duros, esses cineastas julgam seus filhos sempre como boçais, quando não cruéis, reféns cujo destino está entregue ao acaso.
É uma descrença que eles têm na ação humana, recorrente em toda a sua filmografia, desde o primeiro longa, o noir "Gosto de Sangue", rodado em 1982 e lançado dois anos depois. Agora ele chega aos cinemas em nova versão, "director's cut", com minuto a menos e mudanças quase mínimas, o que evidencia o quanto esses cineastas também suspeitam da sagacidade alheia.
Em "Gosto de Sangue", a tal engrenagem superior que seqüestra os personagens para um desfecho patético e maior que eles funciona bem. Sobretudo porque aqui estamos no mais cinefílico dos filmes da dupla, mas feito sob baixo regime orçamentário, o que exige certa dose de talento.
No noir, a trama sempre se apóia na animalidade que alimenta a sobrevivência humana, e aqui a ironia é levada a um extremo atípico no gênero. Só Orson Welles, no também noir "A Dama de Shangai" (47), sorriu amargo sobre a falta de sagacidade de seu protagonista. Mas a diferença é que Welles se colocava (fisicamente) ao lado do otário, ao passo que os Coen avistam tudo do alto, como deuses.
Um marido traído contrata um detetive (M. Emmet Walsh) para assassinar sua mulher (Frances McDormand) e o amante (John Getz). O assassino, percebendo que de repente é melhor matar uma pessoa apenas, tenta trapacear o mandante.
É ele, então, quem derrubará a primeira peça que fará o dominó desmoronar, num mecanismo típico dos Coen. Os equívocos vão tomando as rédeas da trama. Os imprevistos aumentam como bola de neve e a metáfora escolhida pela dupla cineasta é a mancha de sangue que parece jamais sair do enquadramento. Não há visão distópica mais brutal que essa.
Esse olhar niilista e altivo, que já começa o filme dissertando sobre o Texas ser a terra do cada um por si, é menos aguda que arrogante, um olhar de superdeus assistindo à incompetência do homem na Terra, que só toma ciência das coisas no último instante de vida (ou de filme). Basta lembrarmos dos boçais cujos projetos sempre caem por terra em "Matadores de Velhinha", do escritor em vazio criativo de "Barton Fink" ou o sucesso acidental dos bambolês criados pelo nerd da comédia capriana "Na Roda da Fortuna".
Não sendo uma comédia de erros, o filme desenha um destino doído a seus desgraçados, falência plena de projetos. No mais, "Gosto..." é um belíssimo exercício de cinema independente, levado por uma câmera que conduz o espectador para dentro da trama, além da sua moderníssima secura narrativa que destoa do lamê presente no resto da supervalorizada filmografia dos irmãos Coen.


Gosto de Sangue
Blood Simple
   
Direção: Joel Coen
Produção: EUA, 1984
Com: Dan Hedaya, Frances McDormand
Quando: a partir de hoje no Cineclube DirecTV e no Frei Caneca Unibanco Arteplex



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