São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"LUTERO"

Filme converte líder protestante em herói carregado nas tintas

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

"Lutero", o filme, tinha tudo para dar errado. Em primeiro lugar, trata-se de uma produção que se dispõe a retratar como herói o reformador protestante visto por metade do mundo cristão como herético. Além disso, pretende ser historicamente preciso, o que poderia ter gerado tecnicalidades intraduzíveis para a telona.
Não chego a afirmar que "Lutero" escapa a essas armadilhas, mas é forçoso reconhecer que, dadas as condições, ele se sai relativamente bem. Tem a ajuda de um elenco interessante, que inclui nomes como Joseph Fiennes (Lutero), Alfred Molina (João Tetzel), Bruno Ganz (João von Staupitz) e sir Peter Ustinov, um impagável príncipe Frederico, o Sábio.
Esgotadas as virtudes, passemos a alguns dos problemas. Para convencer que Lutero foi um herói sem abrir um novo capítulo nas guerras de religiões, o filme limita as desavenças entre o reformador e Roma à venda desenfreada de indulgências, prática que hoje até o Vaticano rejeita.
Com isso, a questão teológica da justificação pela fé, central para o luteranismo e para quase toda a Reforma, fica obscurecida. É como se tudo se limitasse à ganância de um papa que se endividou mais do que podia. Divergências políticas, a guerra contra os turcos e outros pontos até são citados, mas não são desenvolvidos.
Na tentativa de humanizar Lutero, os produtores carregaram um pouco nas tintas. Lutero, como é óbvio, foi assaltado por dúvidas, muitas das quais ele chegou a pôr no papel. Ao tentar levar esse aspecto para a fita, criaram um herói meio histérico que passa noites de desespero e se martirizando, no limiar da autoflagelação, atitude muito mais "católica" do que "protestante".
Os produtores se revelaram mais "protestantes" ao perseguir quase obsessivamente a fidelidade histórica. O resultado transmite um pouco a sensação de estar assistindo a um documentário da BBC, mas com um problema adicional. Existem personagens demais nos 30 anos finais da vida de Lutero para as duas horas de filme. Figuras importantes como João Eck, adversário intelectual de Lutero, são apenas pinceladas.
É claro que não seria razoável esperar que a fita trouxesse todo o debate teológico que levou à Reforma nem que se detivesse sobre aspectos doutrinários ou cristológicos que logo dividiram os primeiros protestantes. Esses são temas que -felizmente- estão fora da alçada do cinema possível.
Apesar dessas e de outras dificuldades -inevitáveis na adaptação de biografias reais-, "Lutero" é um filme agradável e que, mesmo denso, "flui" bem. É também uma oportunidade para aprender um pouco mais sobre um personagem tão intrigante e que, a crer em Max Weber, foi decisivo para que o mundo -mais especificamente o capitalismo- seja como é hoje.


Lutero
Luther
   
Direção: Eric Till
Produção: Alemanha, 2003
Com: Joseph Fiennes, Alfred Molina
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Kinoplex Itaim, Metrô Santa Cruz, SP Market e circuito



Texto Anterior: "Gosto de Sangue": Irmãos Coen realçam os equívocos
Próximo Texto: "Celular - Um Grito de Socorro": Thriller transforma telefone em herói
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.